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A atuação do juiz e as medidas executivas no CPC/15

Por: Trícia Navarro
Juíza de direito (TJES), mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), doutora em Processo Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual.


A atuação judicial vem sendo objeto de destaque pelos legisladores nacionais e estrangeiros. Com efeito, as últimas reformas processuais trouxeram relevante incremento dos poderes gerenciais, instrutórios e decisórios do juiz.

O CPC/15 dedica um capítulo para tratar dos poderes, dos deveres e da responsabilidade do juiz, e traz no art. 139 uma correspondência ao art. 125, do CPC/73, mas com maior amplitude, estabelecendo os poderes de direção do juiz, imputando-lhe a incumbência de: a) zelar pela igualdade; b) garantir a duração razoável do processo; c) prevenir ato atentatório à dignidade da justiça e procrastinatórios; d) determinar medidas coercitivas para assegurar a obtenção da tutela de direito; e) promover a autocomposição; f) adequar o procedimento dilatando prazos e alterando ordem de produção dos meios de prova; g) exercer o poder de polícia; h) determinar o comparecimento pessoal das partes para inquirição; i) controlar os defeitos processuais; e j) atentar para as demandas individuais repetitivas.

O legislador acrescentou cinco novas hipóteses de atuação do magistrado, sendo três delas de bastante relevância para garantir a adequada gestão processual, constantes dos seguintes incisos: a) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; b) VI – dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito; e c) IX – determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais.

A novidade mais impactante restou inserida no inciso IV, e tem despertado polêmicas na doutrina e agora também na jurisprudência, já que confere ao juiz amplas possibilidades de efetivação de suas ordens judiciais. Isso porque o inciso IV antes aplicável às obrigações de fazer e não fazer previu a possibilidade de determinação das medidas ali previstas também nas ações que tenham por objeto uma prestação pecuniária.

Assim, a inclusão, aparentemente inofensiva, acabou suscitando inúmeras possibilidades de atuação do juiz, como forma de conferir efetividade à ordem judicial. Ressalte-se que por “ordem judicial” deve se entender por qualquer tipo de pronunciamento judicial, seja decisão, sentença ou acórdão.

Em São Paulo, recentemente, houve decisão em que a magistrada, diante do comportamento do executado de não pagar a dívida, não indicar bens à penhora, não fazer proposta de acordo e não cumprir de forma adequada as ordens judiciais, considerou esgotadas as medidas executivas cabíveis, e determinou a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, a apreensão do passaporte do devedor e o cancelamento dos cartões de crédito do executado, até o pagamento da dívida.[1]

O caso repercutiu nacionalmente, com posições divergentes sobre o tema. De um lado, houve quem reconhecesse que a adoção da atipicidade das medidas executivas também nas execuções de obrigação de pagar quantia ensejou uma nova sistemática executiva, representando inclusive o que se denominou de uma “revolução silenciosa da execução por quantia”, embora critérios como excepcionalidade, proporcionalidade, fundamentação, menor onerosidade para o executado e respeito aos direitos e garantias fundamentais devam ser considerados pelo juiz[2]. De outra banda, houve posicionamento doutrinário reputando o dispositivo uma “carta branca para o arbítrio”[3], diante da possibilidade de adoção de medidas arbitrárias de restrição de direitos fundamentais, descontextualizadas das premissas constitucionais.

Com razão as duas correntes. Explica-se. Uma das justificativas do legislador para a instituição da reforma processual foi a necessidade de redefinição ideológica do CPC, conformando-o aos valores da Constituição de 1988, consolidando, assim, um modelo constitucional do processo. E no capítulo que trata das normas fundamentais do processo civil, restou estabelecido no art. 4º que as partes têm o direito de obter em prazo razoável a resolução do mérito e sua satisfação. Em outros termos, prevê o dispositivo que os direitos devem ser reconhecidos e também efetivados. Esta norma fundamental deve guiar os sujeitos processuais, mas em especial o magistrado, em toda sua atuação, quebrando a dicotomia cognição x execução, a fim de que os dois momentos sejam considerados sob a premissa única da finalidade ou do resultado final pretendido.

Sob outro prisma, com o estabelecimento de uma parte geral aplicável a todos os institutos processuais, não há dúvidas de que os preceitos envolvendo os poderes do juiz podem ser aplicáveis também à execução, de forma inclusive cumulativa com as previsões específicas relativas a esta última.

E ao transportar essas perspectivas para a efetivação das decisões judiciais, alteram-se por completo as expectativas executivas, no tocante ao poder de atuação do magistrado, às possibilidades do credor de quantia - antes dependente dos meios tradicionais de coerção do executado para a satisfação de seu crédito -, bem como se põe em cheque a interpretação sobre o princípio da menor onerosidade do devedor.

Estabelece-se, pois, uma cláusula geral de efetivação das ordens judiciais, inclusive no que concerne ao processo de execução ou cumprimento de sentença. Importante contextualizar que, entre as inúmeras alterações do CPC/15, o processo de execução foi o que menos sofreu modificação, embora tenha havido aperfeiçoamentos pontuais. Isso porque as reformas processuais de 2005 (Lei n. 11.232/05) e 2006 (Lei n. 11.382/06) já haviam tratado dos principais aspectos da sistemática executiva, muitas delas ainda em estágio de assimilação pela comunidade jurídica.

Desse modo, o CPC/15 empenhou esforços em melhorar aspectos processuais já bastante ultrapassados, de acordo com a evolução da doutrina e jurisprudência, bem como pelo advento da Constituição da República de 1988. Porém, procurou respeitar a solidificação de modificações legislativas ainda em processos de amadurecimento, como foi caso da reforma processual relativa à execução.

Entretanto, a potencialidade inserta no art. 139 acabou por, indiretamente, reforçar sobremaneira as medidas executivas típicas, prevendo medidas coercitivas e indutivas de execução indireta igualmente para efetivar ordem de pagamento. Em outros termos, a atipicidade das medidas executivas passou a ser aplicável também à persecução de obrigação de pagar quantia.

Marcelo Abelha Rodrigues, ao tratar do tema, distingue com muita propriedade as medidas processuais punitivas das medidas processuais coercitivas, ambas aplicáveis ao executado, por meio de um “duplo dever do magistrado”. As primeiras, aplicáveis às situações que atentem ao dever de lealdade e boa-fé estariam previstas no inciso III, do art. 139, e as segundas, destinadas à promoção das ordens judiciais, se enquadrariam no inciso IV, do mesmo dispositivo legal. Nesse contexto, se o comportamento do executado estiver voltado para atos de improbidade processual (arts. 77, IV e 774), aplica-se uma medida processual de caráter punitivo (art. 139, III). Contudo, se a conduta do executado se relacionar ao descumprimento da ordem judicial, cabível se torna a aplicação de medidas processuais coercitivas ou sub-rogatórias (art. 139, IV), desde que adequadas, proporcionais e razoáveis para atingir sua finalidade.

De toda sorte, as medidas processuais punitivas devem seguir o regime de tipicidade, pois ela é a própria consequência (fim), em contraposição à aplicação de medidas processuais coercitivas, que adotam o regime de atipicidade, sendo apenas um instrumento (meio) para o alcance do resultado pretendido, embora ambas possam ser cumuladas. [4]

Saliente-se, ainda, que para a aplicação de medidas atípicas, o juiz deve observar parâmetros valorativos constitucionais (art. 5º, CF) e processuais (art. 8º, CPC) como atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, a dignidade da pessoa humana, a legalidade, a razoabilidade e a proporcionalidade e a eficiência do processo.

Dessa forma, diante das premissas supracitadas, verifica-se que a atuação judicial em casos de descumprimento de suas ordens deve considerar dois fatores: a) o tipo de comportamento do executado, se de mero descumprimento de ordem judicial ou se de improbidade processual, ou se ambas as hipóteses[5]; e b) a pertinência entre a situação fática e jurídica em questão e a medida adotada pelo juiz, evitando-se distorções que comprometam a finalidade da norma.

Importante também ressaltar a subsidiariedade e excepcionalidade que as medidas atípicas devem ter em relação às medidas típicas, que precisam ser esgotadas antes da aplicação daquelas. Não obstante, em caso de cumulação de medidas atípicas para fins de constatação de sua adequação, elas devem ser examinadas tanto de modo isolado como conjuntamente.[6]

Destarte, na hipótese específica de descumprimento de ordem judicial, caberiam medidas atípicas, como por exemplo: a dívida de veículos poderia ensejar a suspensão da CNH; a dívida de alimentos poderia gerar a apreensão do passaporte para impedir viagens e gastos no exterior; a dívida de cartão de crédito poderia impedir o fornecimento de novas linhas de crédito ou de outros benefícios bancários. Mas cada uma dessas medidas deve ser exaustivamente fundamentada, demonstrando a coerência entre o suporte fático e a medida judicial, legitimando a restrição imposta.

Com efeito, liberdade e propriedade são valores caros para a nossa sociedade e só devem ser limitados diante de circunstâncias que justifiquem tamanha intervenção estatal, e após o devido contraditório[7], oportunizando ao executado esclarecer o descumprimento da obrigação de pagar e evitando a decisão surpresa, nos termos dos arts. 7º e 10, do CPC.

E retornando ao caso concreto, a decisão de primeiro grau de jurisdição acabou sendo suspensa/cassada em virtude de liminar proferida em sede de HC impetrado no TJSP, sob o fundamento de que a nova sistemática do art. 139, IV, do CPC/15 deve considerar o preceito constitucional do art. 5, XV, que assegura o direito de ir e vir. A decisão do desembargador também considerou o art. 8 do CPC/15 ao qual o juiz deve atentar para a eficiência do processo, mas também aos fins sociais e às exigências do bem comum, devendo resguardar e promover a dignidade da pessoa humana, observando a proporcionalidade, a razoabilidade e a legalidade.[8]

Essas potencialidades executivas podem representar grande avanço na efetividade das decisões judiciais, mas ainda demandarão amadurecimento cultural e jurídico para se solidificarem em nosso ordenamento. Prova disso foi cassação da decisão pelo tribunal, que embora no caso concreto tenha exercido um controle aparentemente correto, especialmente diante da desproporcionalidade demonstrada, pode configurar uma posição conservadora a inviabilizar a adoção de outras medidas similares. Portanto, tem-se ainda um longo caminho até a sedimentação do modelo de atuação judicial mais aceitável pelo sistema processual brasileiro.

[1] Confira a decisão em: http://s.conjur.com.br/dl/cpc-artigo-139-juiz-poder-determinar1.pdf. Acesso em 20/09/2016.

[2] Sobre o tema, conferir: GAJARDONI, Fernando: A revolução silenciosa da execução por quantia. Disponível em: http://jota.uol.com.br/a-revolucao-silenciosa-da-execução-por-quantia. Acesso em 02/09/2016.

[3] Ver: STRECK, Lênio; NUNES, Dierle. Como interpretar o art. 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Disponível em:http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio. Acesso em 30/08/2016.

[4] Cf.: RODRIGUES, Marcelo Abelha. O que fazer quando o executado é um “cafajeste”? Apreensão de passaporte? Da carteira de motorista?Disponível em:http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI245946,51045-O+que+fazer+quando+o+executado+e+um+cafajeste+Apreensao+de+passaporte. Acesso em 25/09/2016.

[5] Discordando desse critério, consultar: ROCHA, Jorge Bheron; SILVA, Bruno Campos; SOUSA, Diego Crevelin de. Medidas indutivas inominadas: o cuidado com o fator Shylokiano do art. 139, IV, do CPC. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/medidas-indutivas-inominadasocuidado-comofator-shylokiano-do-art-139-iv-cpc-por-jorge-bheron-rocha-bruno-campos-silvaediego-crevelin-de-sousa/. Acesso em 27/09/2016.

[6] Nesse sentido, ver: RODOVALHO, Thiago. O necessário diálogo entre a doutrina e a jurisprudência na concretização da atipicidade dos meios executivos. Disponível em: http://jota.uol.com.br/o-necessario-dialogo-entre-doutrinaejurisprudencia-na-concretizacao-da-atipicidade-dos-meios-executivos. Acesso em 24/09/2016.

[7] Defendendo a necessidade de o juiz observar a legalidade estrita e o contraditório, cf.: TUCCI, José Rogério Cruz. Ampliação dos poderes do juiz no novo CPC e princípio da legalidade. Disponível em:http://www.conjur.com.br/2016-set-27/paradoxo-corte-ampliacao-poderes-juiz-cpc-principio-legalidade. Acesso em 28/09/2016.

[8]Confira: http://www.conjur.com.br/2016-set-09/justiça-anulahttp://s.conjur.com.br/dl/cpc-artigo-139-juiz-poder-determinar1.pdf-decisao-suspendeu-cnh-cartao-credito-reu Acesso em 27/09/2016.
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