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A estabilização da Tutela de Urgência Antecipada

Por: Paula Menna Barreto
Advogada (Ancelmo Advogados), pós-graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Stage Internacional pelo Barreau de Paris, com foco em Direito Comparado e Arbitragem.


O novo Código de Processo Civil trouxe disciplina inédita para a denominada tutela provisória diferenciada[1].

De forma didática, o NCPC subdivide a tutela provisória em evidência e urgência, sendo que esta poderá ser de natureza antecipatória ou cautelar. Para a tutela de urgência, prevê ainda a possibilidade de formulação de maneira incidente ou mesmo antecedente.

A grande inovação nos parece estar na hipótese de formulação do pedido de tutela provisória satisfativa de urgência, em caráter antecedente.

Prevê o art. 303, do CPC/2015 que “Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo.”.

Determina, então, o novo Código a possibilidade de formulação de requerimento de tutela de urgência, prévio à eventual propositura da ação. Ou seja, antecedente à formulação do pedido principal de tutela jurisdicional.

A grande novidade está na possibilidade de “estabilização” dessa decisão concessiva[2].

Como se sabe, a tutela antecipada tem por principal característica a sua provisoriedade. Antecipa-se o provimento final, mediante a presença de certos requisitos, com base em uma cognição superficial, postergando-se a cognição plena, que se seguirá com um pronunciamento final de mérito.

Com base em institutos do direito comparado[3], o novo Código de Processo Civil, em seu artigo 304, disciplinou a estabilização dessa tutela antecipada antecedente[4].

A ideia surgiu já nas Jornadas de Direito Processual promovida pelo Instituto Brasileiro de Direito processual (IBDP), realizadas em Foz do Iguaçu em 2003, na qual foi criada comissão para estudar a alterações na tutela antecipada. Essa apresentou, na época, proposta de alteração do então artigo 273, do CPC/1973. Em sua justificativa, defendeu a comissão que dependerá das partes a decisão da conveniência, ou não, da instauração e prosseguimento da demanda e sua definição, com a correspondente sentença de mérito. Com a satisfação das partes, que considerem pacificado o conflito, a instauração do processo será um ônus do demandante ou demandado, sendo a omissão seguro indício de que não há necessidade de sentença de mérito[5].

Nesse contexto, o artigo 304 prevê que, nos casos em que não for interposto o recurso cabível contra a decisão[6], esta ganhará estabilidade[7]. Hipótese contrária, diante da resistência do réu, a inicial deverá ser aditada e o processo tramitará regularmente, até o seu provimento final.

Fica garantida, então, a possibilidade de futura cognição exauriente, seja pela interposição do recurso, com o consequente aditamento da inicial, ou mesmo por ação própria, em atenção aos princípios do processo justo[8].

Caberia, por outro lado, verificar se essa “estabilidade” poderia ser alcançada mesmo na eventualidade de, não interposto o recurso, haver aditamento da inicial, na forma do inciso I, do § 1º, do art. 303.

A nosso ver, a estabilização somente ocorrerá na hipótese em que não há resistência de qualquer das partes envolvidas[9], de forma a se dispensar a cognição exauriente e a sentença de mérito. Reconhece-se a esse título um caráter executivo, com força estável, até eventual impugnação, através de ação própria.

Tanto assim o é que o Código determina que, não interposto o recurso pelo réu, o processo será extinto, sem julgamento de mérito.

O problema, aqui, é de ordem temporal. Isso porque a Lei parece criar a obrigação do autor de aditar a inicial antes mesmo de sabedor de eventual recurso a ser interposto pelo réu.

Essa nos parece uma falsa polêmica. A redação conferida aos artigos 303 e 304, mesmo que falha, deverá ser interpretada de forma sistemática. Assim, a intimação do autor para aditamento só se fará necessária após (eventual) interposição de recurso pelo réu, já que hipótese contrária, ou seja, a não interposição de recurso, acarretará na imediata extinção do feito[10].

Essa interpretação atende aos princípios da efetividade e economia processual, impedindo a realização de atos desnecessários, em claro dispêndio de tempo processual.

Deste modo, optando o autor pela técnica da tutela provisória antecipada antecedente, ficará a cargo do réu manifestar o seu interesse sobre o prosseguimento, ou não, da ação, com o futuro pronunciamento de mérito sobre o objeto litigioso[11].

Por outro lado, mesmo que se entenda que o autor poderá optar pelo prosseguimento do processo, ainda que não haja a interposição de recurso pelo réu, essa decisão não poderá se tornar estável.

Isso porque a estabilização não se coaduna com a posterior cognição plena e exauriente, esta sim apta a criar a coisa julgada material. A decisão concessiva da antecipação, apesar de estável, não será imutável, pois revogável por ação própria.

Essa estabilização é, portanto, um degrau de segurança aos jurisdicionados, que se contentarão com a sua provisoriedade, diante das circunstancias do caso.

Assim, o autor não pode querer a estabilização e, ainda, um provimento final sobre o mesmo objeto litigioso. O que se terá, na prática, será uma ou outra estabilidade, na medida de seus requisitos.

A ideia da tutela antecipada antecedente e da estabilidade da decisão proferida é exatamente evitar as delongas de um processo de cognição plena, que poderá tramitar por anos a fio no Poder Judiciário[12]. Não há, nesses casos, uma pretensão efetivamente resistida. O que há é uma pretensão meramente descumprida[13].

Conclui-se, então, que a inovação, apesar de salutar, deve ser analisada em atenção aos demais princípios do processo, sempre de forma a conferir uma coerência sistemática e de maneira a evitar a criação de uma aberração jurídica.

Portanto, a decisão que concede a tutela antecedente deve se tornar estável sempre que não houver resistência de qualquer das partes, que se contentarão com o provimento antecipatório sumário, mesmo que detenha certo grau de provisoriedade.

Em se havendo oposição, seja por parte do réu, seja por parte do próprio autor da demanda, que requer um provimento final de mérito sobre a questão sub judice, não há que se falar em estabilização da medida, que passará pelo crivo do processo comum, com a análise final de seu mérito.

[1] Utilizaremos a expressão “tutela diferenciada” em oposição à obtida através do procedimento ordinário.

[2] Não há que se cogitar em estabilização da tutela cautelar de urgência em caráter antecedente (Enunciado 420, do Fórum Permanente de Processualistas Civis).

[3] Cite-se, como exemplos, a França, Bélgica e Itália.

[4] Hipótese semelhante ocorre com a ação monitória, na qual a não resistência do demandado acarreta na transmudação do documento em título executivo. Nos casos em que haja resistência, opera-se a tramitação do feito pelo rito comum, com a análise do mérito da causa.

[5] A comissão foi presidida por Ada Pellegrini Grinover e teve por membros Luiz Guilherme Marinoni, Kazuo Wantanabi e José Roberto dos Santos Bedaque, e contando com auxilio e colaboração de José Carlos Barbosa Moreira.

[6] O recurso em sentido estrito seria o Agravo de Instrumento, na forma do artigo1.0155, I, doCPC/155.

[7] Parte da doutrina defende que a mera impugnação formal da decisão já seria apta a impedir a sua estabilização, sendo desnecessária a interposição de recurso (por todos, Luiz Rodrigues Wambier).

[8] GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In PEIXINHO, Manoel Mesias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Org.). Os Princípios da Constituição de 1988. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

[9] Nesse sentido, já há muito José Roberto dos Santos Bedaque defendia que “Concedida a tutela antecipada, a cognição plena fica na dependência da provocação de qualquer das partes. Não formulado pedido nesse sentido, a consequência será a definitividade da providência concedida em caráter sumário.” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos, in ‘Estabilização das tutelas de urgência’, Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover/ Coordenação Flávio Luiz Yarshell e Maurício Zanoide de Morais, 1. Ed. São Paulo: DPJ Editora, 2005)

[10] Alexandre Câmara sugere, como solução ao problema, que o autor deverá ser intimado, na hipótese de não interposição do recurso pelo réu, para informar se tem interesse no prosseguimento do feito, diante do aditamento, ou se opta pela estabilização da medida. “Caso o autor não desista da ação, porém, o processo seguirá em direção a uma decisão fundada em cognição exauriente, não se cogitando de estabilização da tutela de urgência satisfativa antecedente” (CÂMARA, Alexandre Freitas, in O novo processo civil brasileiro, São Paulo: Atlas, 2015, p. 165).

[11] Em sentido contrário, Fredie Didier, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira defendem, em seu curso, que o autor poderá optar pelo prosseguimento do processo para obtenção da tutela definitiva. A estabilidade, nesse caso, dependeria da não manifestação do autor, em sua inicial, pelo interesse em prosseguir com o processo (pressuposto negativo) (DIDIER JR., Fredie, Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedentes, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela/ Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira, 11. Ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016, p. 619).

[12] “Pretende-se, com essa solução, reduzir o número de processos ordinários, pois haveria uma tendência de a parte conformar-se com o resultado, principalmente se não tiver convicção sobre a possibilidade de modificação da tutela sumária” (BEDAQUE, op. Cit).

[13] Cândido Rangel Dinamarco fala em crise de inadimplemento das obrigações (Instituições de Direito Processual, Vol. I, p. 150).
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