Artigos

A força dos precedentes decorrentes do julgamento de casos repetitivos Uma análise sobre as semelhanças e diferenças entre a força do precedente formado em IRDR e em julgamento de recursos repetitivos.

Por: Beatriz Galindo
Mestranda pela Universidade de Lisboa, pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC-Rio e graduada pela Universidade Federal Fluminense. Advogada


Muito se discute sobre a criação de um eventual sistema de precedentes pelo Código de Processo Civil de 2015[i], porém, sem entrar nesse debate, pode-se dizer com tranquilidade que o legislador pretendeu aumentar as hipóteses de decisões que devem ser observadas pelo magistrado no julgamento de um caso concreto. Afirma-se com veemência – e acredito até que seja essa a principal força do CPC/15 – que a missão do novo ordenamento é tornar a jurisprudência estável, íntegra e coerente, conforme previsto no art. 926. Para cumprir este papel, aposta-se em mecanismos de controle das decisões judiciais: alguns velhos conhecidos por sua previsão constitucional (e. G. Enunciados de súmulas vinculantes); outros incorporados ao CPC/73 em suas últimas reformas (e. G. Repercussão geral e julgamento de recursos especial e extraordinário repetitivos); e por fim os novatos; mas todos com uma cara nova e uma reorganização, dando a impressão da criação de um sistema comum[ii].

Essa impressão ficou mais evidente no que diz respeito ao “julgamento de casos repetitivos”, denominação criada pelo art. 928 para conglomerar todas as decisões proferidas em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os recursos especial e extraordinário repetitivos. Criou-se, assim, a expectativa de que tais decisões receberiam tratamento semelhante. Inclusive, até mesmo quando a doutrina discorda da força do precedente, não o faz em relação aos casos repetitivos. Entretanto, a Lei 13.256/16 – que alterou o CPC/15 antes mesmo da sua entrada em vigor – tratou de criar um abismo entre estas decisões ao retirar a possibilidade de se propor reclamação imediata quando não observado o precedente criado pelo julgamento dos recursos especial e extraordinários repetitivos, desvirtuando a pretendida unificação.

Resta saber se essa modificação foi significativa a ponto de diminuir a força do precedente decorrente do julgamento de recursos especial e extraordinário repetitivos, que agora não mais pode ser objeto de reclamação antes de esgotadas todas as instâncias ordinárias, ao contrário do que se permite ao precedente extraído do IRDR. Passo, então, a analisar os reflexos processuais desta modificação legislativa e demonstrar que antes da Lei 13.256/16 havia uma pretensão de tratamento uniforme para estas espécies de precedentes.

i. Tutela de Evidência

Iniciando a análise pela tutela de evidência, já vimos na coluna (https://goo.gl/nUyjRy) que a existência de tese firmada em julgamento de casos repetitivos é suficiente para autorizar a concessão desta tutela quando a parte comprova seu direito documentalmente na inicial. Nesse caso, a parte obterá uma tutela provisória sem precisar demonstrar o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, de modo a facilitar em muito a proteção imediata do seu direito.

Nota-se, aqui, a tal unificação do tratamento tanto para as teses firmadas em julgamento de recursos especial e extraordinário repetitivos, quanto para as decorrentes do julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas.

ii. Improcedência Liminar

Outra novidade significativa é a possibilidade de o juiz julgar improcedente de plano – antes mesmo de citar o réu – o pedido do Autor que contrariar acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos (inciso II do art. 332); ou entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas (inciso III do art. 332). São variadas as hipóteses de improcedência liminar, porém esta análise perpassa apenas pelos casos repetitivos.

Veja que o dispositivo confere verdadeira força a estes precedentes, pois extingue imediatamente um processo quando baseado em pedido contrário à tese firmada em julgamento de casos repetitivos.

iii. Fundamentação das decisões

O Código de 2015 inova ao especificar o que não se considera uma decisão devidamente fundamentada, e, por conseguinte, nula (art. 489, § 1º). E, assim, impede que sejam proferidas decisões que se limitem a invocar precedente, sem identificar seus fundamentos determinantes, nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos. Ora, por não fazer distinção entre os precedentes, conclui-se que quaisquer das decisões previstas no art. 927 – que tem sido visto pela maior parte da doutrina como norteador dos precedentes – deve ser enfrentada pelo julgador quando este pretender aplicar a tese a um caso concreto. Ou seja, não basta ao juiz argumentar pela (im) procedência do pedido com base em um precedente; deve explicar quais são os fundamentos deste precedente e como se comunicam com o caso em análise.

Por sua vez, o inciso VIdo § 1º do art. 489 também considera não fundamentada decisão judicial que não segue precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. A situação aqui é oposta à anterior, e exige o mesmo rigor do julgador, que deve explicar o porquê de não aplicar o precedente à espécie.

Mais uma vez temos força semelhante sendo garantida aos precedentes decorrentes de julgamento de casos repetitivos.

iv. Embargos de Declaração

Detalhando consideravelmente as possibilidades de oposição de embargos de declaração, o Código optou por considerar omissa a decisão que não se manifesta sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos, dando poder considerável a estes precedentes, na medida em que o julgador tem obrigação de se manifestar sobre eles seja pelo dever de fundamentação, seja por incorrer em omissão passível de embargos de declaração.

v. Remessa necessária

A remessa necessária, muitas vezes criticada por submeter ao duplo grau de jurisdição obrigatoriamente as sentenças contrárias à Fazenda Pública, também sofreu influência do modelo de precedentes adotado pelo CPC/15, o que representou um grande avanço para a celeridade processual, na medida em que não mais se impõe o reexame automático da sentença pela segunda instância quando esta se fundar em entendimento firmado em julgamento de casos repetitivos (dentre outras hipóteses).

vi. Matérias passíveis de decisão monocrática pelo relator do recurso

Na mesma esteira, o CPC/15 também simplificou o julgamento do recurso, quando o relator é capaz de identificar de plano que os fundamentos do recurso são contrários à tese firmada em julgamento de casos repetitivos como um todo; ou em sentido oposto, quando a decisão recorrida se mostra contrária. Em ambas as hipóteses, admite-se o julgamento monocrático do recurso, sendo que na segunda se exige apenas a intimação do recorrido para a apresentação das contrarrazões, de modo a promover o contraditório efetivo.

vii. Ação rescisória

Já que estamos analisando uma eventual diferenciação criada pela Lei 13.256/16 aos precedentes decorrentes do julgamento de casos repetitivos, é interessante suscitar que essa mesma norma conferiu tratamento uniforme àqueles quando inovou ao permitir o ajuizamento de ação rescisória por violação manifesta de norma jurídica, nos casos em que a decisão rescindenda for baseada em acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento. A priori, portanto, não parece ter havido uma intenção do legislador de quebrar o conceito de casos repetitivos consagrado no art. 928 do CPC/15 com o advento da Lei 13.256/16.

viii. Reclamação

Depois de tantos exemplos de tratamento uniforme conferido pelo CPC/15 às teses firmadas em incidente de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos especial e extraordinário repetitivos, inclusive com a aglutinação destes precedentes pelo art. 928 através da denominação única de “julgamento de casos repetitivos”, soa no mínimo estranha a escolha legislativa de alterar o art. 988, antes mesmo da entrada em vigor do Código, de modo a restringir a propositura de reclamação apenas para os recursos repetitivos.

A redação originária – frise-se – era categórica ao permitir o cabimento da reclamação também para a hipótese de descumprimento de entendimento firmado em julgamento de recurso especial ou extraordinário repetitivo. Assustados com a ampliação da competência dos Tribunais Superiores, que após a vigência do CPC/15 passaria a ter que julgar reclamações contra decisões de qualquer instância que violassem tese fixada no julgamento de casos repetitivos, Ministros do STJ e STF correram para convencer o legislativo a aprovar a Lei 13.256/16, que dentre outros retrocessos, limitou consideravelmente a possibilidade de propositura de reclamação dirigida a estes tribunais.

Suprimiu-se das hipóteses expressas de cabimento da reclamação a possibilidade de garantir a observância de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos, até então constante no inciso IV do artigo 988. Bem como, optou-se por reformular o § 5º, que passou à seguinte redação: “É inadmissível a reclamação: [...] II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias” (grifos meus).

Ou seja, a reclamação passou a ter tratamento diferenciado para os casos repetitivos, sendo cabível de forma plena e imediata para garantir a observância de tese firmada em incidente de resolução de demandas repetitivas, enquanto para garantir a observância de entendimento extraído do julgamento de recursos especial ou extraordinário repetitivo passa a ser cabível apenas quando esgotadas as instâncias ordinárias[iii].

Não pense se tratar de modificação irrelevante, diante de tantos exemplos de tratamento uniforme a esses precedentes. Aqui coaduno com a posição defendida por Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas, quando enxergam na previsão de cabimento da reclamação o suficiente para qualificar esses precedentes previstos no rol do art. 927 como vinculantes em sentido forte[iv], e complementam afirmando que o cabimento de reclamação tardiamente gera uma perda da força dissuasiva[v].

Ora, o que até então eram precedentes com tratamentos isonômicos; do dia para a noite, motivados apenas pela velha busca pela redução de processos nos Tribunais Superiores, rompe-se com o plano de uniformização.

Vejam que não sou contra a redução de processos nos tribunais, mas a escolha pelo modelo de precedentes levará – a longo prazo – a atingir essa meta através de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente, que conferirá ao jurisdicionado a possibilidade de firmar estratégias processuais baseadas em previsibilidade. Convenhamos que previsibilidade não é uma realidade atual, muito por conta da nossa jurisprudência ensandecida, que não transmite qualquer segurança jurídica às partes.

Portanto, a justificativa para a limitação ao cabimento da reclamação mostrou-se equivocada, uma vez que além de desarticular um modelo uniforme de precedentes criado pelo art. 928, também não se destina ao fim pretendido, visto que, a longo prazo, a estabilidade da jurisprudência seria alcançada de maneira mais eficiente com a norma prevista na versão original do CPC/15.

[i] Confira: http://www.conjur.com.br/2016-set-22/senso-incomum-commonlistas-brasileiros-proibir-juizes-interpretar#sdfootnote1anc; MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. ARENHART, Sérgio Cruz. O novo processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[ii] Repita-se, não se pretende em um trabalho de poucas linhas analisar uma eventual criação de um sistema de precedentes peloCPC/155. O objetivo do texto se limita a comparar os precedentes decorrentes de julgamento de casos repetitivos, previstos no art. 928.

[iii] Por esgotamento das instâncias ordinárias adoto posição defendida por Lenio Luiz Streck no sentido de que “a um só tempo será possível promover ação de reclamação e interpor recurso excepcionais” STRECK, Lenio Luiz. Art. 988, In: NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.) Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016 p. 1305. Em sentido diverso, ao entender que a mera interposição de recurso especial ou extraordinário não seria suficiente para o esgotamento das instâncias ordinárias: Rcl 23476 AgR, Relator (a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 02/08/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-174 DIVULG 17-08-2016 PUBLIC 18-08-2016.

[iv] Por precedente no sentido forte, explicam os autores: “Precedentes vinculantes em sentido forte estão no art. 927, III. Fortes, porque ensejam reclamação. Nos incs. IV e V estão as situações em que a obrigatoriedade é média. É normal e desejável que esses parâmetros sejam respeitados, e se houver afastamento deles a decisão pode ser corrigida (ou não) pela via recursal. [...] E há outras situações em que o legislador quis, pura e simplesmente mostrar que a decisão de um tribunal superior deve ser vista com atenção e de preferência respeitada, em casos subsequentes iguais ou semelhantes. Veja-se por exemplo o art. 1.035, § 5º”.

[v] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 561-563. Em sentido contrário, para afirmar a inconstitucionalidade do efeito vinculante para os casos repetitivos: Nelson Nery Jr. E Rosa Maria de Andrade Nery. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 1080)
« Voltar