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A possibilidade de limitação dos poderes instrutórios do juiz pelos negócios jurídicos processuais

Por: Estefania Côrtes
Mestranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro – FND-UFRJ, e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, advogada.


O sistema processual civil vigente manteve em prol do Estado-juiz os poderes instrutórios. Basta ver o que consta no art. 370 do CPC/15, para constatar que o magistrado pode requisitar a produção probatória no processo, independentemente do requerimento das partes. Trata-se de regra que também estava disposta na antiga lei processual, no antigo art. 130 do CPC/73.

O novo sistema processual inspirado no atual modelo cooperativo de processo, prevê uma divisão equilibrada de funções dos sujeitos que desenvolvem o rito processual e, desse modo, ao lado dos poderes instrutórios judiciais, atribui às partes o poder de praticar atos negociais que digam respeito aos seus ônus, deveres, faculdades e poderes processuais, bem como flexibilizar o rito procedimental.

Justamente a constatação desses poderes paralelos e diversos, atribuídos pela lei às partes e ao juiz, nos faz indagar sobre a compatibilidade de tais poderes no andamento do processo.

O direito probatório é um conjunto de normas processuais que regulamentam o direito à produção da prova. Todo cidadão e jurisdicionado tem direito à produção de prova no processo, seja ele jurisdicional ou não, como garantia prevista na Constituição. O art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição da Republica Federativa do Brasil (CRFB/88) assegura o devido processo legal, bem como o princípio da ampla defesa, cujo núcleo essencial nesse caso, pelo que nos parece, consiste no direito à prova[1].

Não há dúvidas de que as provas das alegações dos fatos arguidos pelas partes num processo constituem direito fundamental do jurisdicionado, seja incidentalmente num processo, seja numa demanda autônoma[2] que tenha essa exclusiva finalidade. O direito à prova, a priori, é uma garantia constitucional assegurada às partes.

Além da Constituição Federal, o CPC/15 também regulamenta o direito à prova no desenvolver do iter procedimental no processo civil e, tamanha a importância desse direito, a lei reservou uma regra que atribui um direito autônomo à prova, conforme art , 381, I do CPC/15. É digno de nota o regramento na lei processual, tendo em vista a valorização da instrução do processo em busca de uma verdade[3] no mundo dos fatos. Desse modo, mesmo que as partes não estejam inseridas numa relação jurídica processual perante a atividade judiciária, poderão ajuizar uma demanda autônoma, com a finalidade exclusiva de obtenção de uma prova e, tão somente ela.

A busca da verdade no processo com a finalidade de reconstruir o acontecimento real dos fatos, dentro do possível, é um meio para que se alcance uma decisão justa.[4] Por conta desse ideal, os poderes instrutórios do magistrado, consagrados especificamente no art. 370 e, também, no art. 139, VIII, ambos do CPC/15, representam uma atuação estatal publicista em nome do devido processo legal. Não há qualquer insurgência contra tal norma.

Nesse ponto, é certo dizer que a defesa teórica desse ativismo judicial dentro do processo consiste na ideia de que o juiz, ao determinar a produção de uma prova não requerida pelas partes, não sabe, de antemão, qual será o resultado da prova e, não sabe, por conseguinte, qual delas poderá se beneficiar e, por isso, não se configuraria como atuação parcial de julgamento.

Os poderes instrutórios do juiz estão, de fato, previstos no art. 370 do CPC/15 que assim dispõe: “Caberá ao juiz de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento de mérito”. Resta ao aplicador do Direito a indagação a respeito dos eventuais limites desse poder, isto é, o juiz pode se utilizar desse poder mesmo de forma contrária à vontade da parte ou de ambas? Em outras palavras, o poder instrutório do juiz é amplo e originário ou meramente complementar e subsidiário à iniciativa probatória das partes? Afinal, quem titulariza o direito à produção das provas?

Antes de responder a tais indagações, cabe a breve análise da mentalidade da lei processual ao determinar a cláusula geral dos negócios jurídicos processuais, no art. 190 do CPC/15. Nesse passo, conforme já afirmado acima, o novo Código de Processo Civil implementa um inovador método de organização do processo, distribuindo igualmente os poderes, deveres e responsabilidades dos sujeitos do processo.

Assim, o art. 190 do CPC/15 representa uma regra de cunho liberal, negocial, voltado à proteção da vontade das partes e, mais especificamente, ao princípio do autorregramento dos sujeitos no processo. Tal princípio é corolário do modelo cooperativo de processo que se pode depreender da norma fundamental consagrada no art. 6º do mesmo diploma legal.

Nos corredores dos fóruns muito se ouve sobre a dificuldade da aplicabilidade prática dos negócios jurídicos processuais na praxe forense. De um modo geral, o que se identifica é um desconhecimento generalizado a respeito do instituto. Muitos aplicadores do Direito, ao encerrarem uma conversa jurídica pelos fóruns afora, acreditam que os negócios processuais exigem um “coleguismo”, ou “amizade”, ou como se ouve corriqueiramente um “andar de mãos dadas” dos adversários no desenrolar procedimental do litígio. Não se trata disso.

Em verdade, verifica-se a necessidade de um aprofundamento mínimo e urgente a respeito do tema que, diga-se de passagem, não é o objetivo central deste trabalho. Aqui, busca-se apenas delimitar a importância da divisão de poderes dos sujeitos no processo e o papel dos negócios processuais, que é fundamental para essa delimitação.

A cláusula geral do art. 190 representa uma regra que demonstra um poder amplo atribuído às partes de influenciarem diretamente o processo. Os particulares envolvidos poderão opinar a respeito do rito procedimental, determinar efeitos sobre ele e, ainda, poderão deixá-lo conforme a própria vontade consensual. A cláusula geral dos negócios processuais exige um amadurecimento maior do aplicador do Direito, conclamando um talento negocial, nunca antes valorizado na praxe forense, a respeito das melhores formas de se buscar um desfecho no processo.

Um exemplo desse poder negocial, dentre inúmeros outros típicos ou atípicos, se encontra justamente na possibilidade de limitar os poderes instrutórios do juiz. Daí, passa-se à análise de todas as indagações formuladas acima, neste próprio texto. Todas aquelas indagações alhures podem ser resumidas em uma única: afinal, os poderes instrutórios do juiz podem ser limitados por negócios jurídicos processuais? Pensamos que sim. Pragmaticamente, pensa-se noutra indagação: e se o juiz determina a produção pericial e as partes simplesmente não providenciam as custas correspondentes?[5] Isso já não seria uma postura limitadora da vontade das partes sobre a do juiz?

Nesse passo, o posicionamento aqui adotado compreende a admissibilidade de uma atividade instrutória judicial, que interprete a regra contida no art. 370 como uma atividade complementar e subsidiária[6]. Cumpre às partes a iniciativa da produção probatória dos fatos por elas próprias trazidos e, então, de modo complementar, caso o juiz entenda necessária alguma produção de prova que não afete o direito probatório individual da parte, nem vá de encontro à sua vontade de produzir o meio probatório, a requisição oficiosa poderá ser admitida.

O direito à prova é uma garantia fundamental do jurisdicionado e, não, do Estado-juiz. Neste texto, defende-se a harmonia e a cooperação entre os sujeitos processuais. Mas em havendo conflito quanto ao poder de produção probatória, deve-se optar pelo entendimento que dê prevalência à vontade das partes em detrimento da vontade do juiz. O direito à prova é titularizado pela parte e, não, pelo juiz. Desse modo, ao limitarem consensualmente os poderes instrutórios do juiz não estariam as partes dispondo sobre disposição de vontade alheia, mas, sim, sobre direito probatório próprio.

Há de se admitir que o assunto não é pacífico na doutrina, até mesmo em razão da novidade e do fundo ideológico nele enraizado. Paulo Lucon, por exemplo, posiciona-se expressa e contrariamente à admissibilidade de as partes disporem de forma diversa do âmbito de atuação judicial, no seu poder instrutório.[7]

Data vênia, não obstante o posicionamento em sentido contrário em razão da resistência doutrinária de caráter publicista e, ainda, apesar do desconhecimento generalizado dos aplicadores do Direito quanto aos negócios processuais, somos da opinião de que o equilíbrio deve sempre pautar os comportamentos no processo, sejam eles relacionados ao direito de prova ou não. E a aceitação da regra liberal já positivada dos negócios, no art. 190 do CPC/15, auxiliam nessa busca de equilíbrio.

Em verdade, somos tão favoráveis à permanência da regra positivada do art. 370 que trata dos poderes instrutórios do juiz, quanto à cláusula geral que atribui às partes amplos poderes negociais processuais, pois deve-se repensar na visão maniqueísta que divide a ideia de um processo ou totalmente publicista ou totalmente liberal. A ideia aqui defendida consiste em prezar por um equilíbrio que somente sujeitos envolvidos no espírito cooperativo do novo sistema processual poderão implementar para tornar o processo cada vez mais democrático e civilizado.

[1] Greco, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Disponível no endereço eletrônico: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15708-15709-1-PB.pdf

[2] Didier Jr. Freddie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela/ Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira. 10 ed. Salvador: JusPodium, V II. 2015.

[3] Autor italiano que tenta exaurir o problema da verdade no processo: Taruffo, Michelle. Uma simples verdade. O juiz e a construção dos fatos. Tradução: Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons. 2012.

[4] BARBOSA MOREIRA, Carlos Barbosa. Breves Observaciones sobre algunas tendências contemporâneas del processo penal. P. 1.

[5] “Poder-se-ia, então, afirmar a validade de um negócio processual em que as partes tenham convencionado a inadmissibilidade de um determinado meio de prova? Afinal, o juiz tem o poder de determinar ex officio as provas que entenda necessária para o julgamento da causa. A resposta, porém, é inegavelmente positiva. Em primeiro lugar é preciso perceber que se, de um lado, é do juiz o poder de determinar a produção de provas, de outro lado é das partes o ônus da prova, além de terem elas o ônus de praticar atos necessários à produção das provas. Assim, por exemplo, de nada adiantaria o juiz determinar, de ofício, a produção de prova pericial se as partes convencionaram que não haveria pagamento de honorários ao perito.” CÂMARA. Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas. 2015. P. 127.

[6] No mesmo sentido: DIDIER JR. Fredie. Didier Jr. Freddie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela/ Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira. 10 ed. Salvador: JusPodium, V II. 2015, p. 89-91; GODINHO, Robson. Negócios jurídicos processuais sobre ônus da prova no novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. P.90; Em sentido diverso, Bedaque, ao admitir que o juiz possa determinar oficiosamente a produção probatória após a perda do prazo de iniciativa da parte, revela seu entendimento contrário à mera complementariedade judicial. BEDAQUE, Jose Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2013, p. 168-169. LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Comentários aos artigos 369-381. In CABRAL, Antonio; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2ª ed., 2016; Para Tricia Navarro, o juiz detém poderes instrutórios oficiosos autônomos, ou seja, que independem da vontade das partes. CABRAL, Tricia Navarro Xavier. Poderes instrutórios do juiz no processo de conhecimento. Brasilia DF: Gazeta Jurídica, 2012 p. 69 e 74.

[7] O autor afirma: “O fato de as partes poderem convencionar sobre os seus ônus, permite que elas de comum acordo, rejeitem a produção de uma determinada prova. Isso não significa, contudo, que o magistrado não possa determinar a produção dessa prova se assim ele entender necessário. Os poderes instrutórios do juiz assim ficam preservados. E assim não poderia ser diferente, sob pena de se violarem a lógica e a teoria geral do direito. Como sujeitos capazes não podem dispor entre si a respeito da esfera jurídica de um terceiro, não podem as partes querer revogar poderes do juiz conferidos pela lei”.
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