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A vinculação do juiz sobre a delimitação consensual acerca de questões de fato

Por: Bruna Bessa de Medeiros
Advogada. Pós-graduanda pela PUC-RS.


O Código de Processo Civil de 2015, que positivou o modelo cooperativo de processo, busca uma divisão de trabalho equilibrada entre partes e juiz, objetivando uma decisão de mérito justa, efetiva e em tempo razoável (art. 6º, CPC/15[1]). Foi concedido, nesse intuito, maior espaço à atuação das partes na condução do processo e maior valorização ao autorregramento da vontade.

Como consequência desse novo modelo de processo, além da positivação de uma cláusula geral de conformação do procedimento e posições processuais (art. 190, CPC/15[2]), uma das grandes inovações trazidas pelo diploma legal, ainda houve o aumento das hipóteses de convenções processuais típicas, tais como a distribuição consensual do ônus da prova (art. 373, parágrafo 3º, CPC/15[3]), a escolha do perito (art. 471, CPC/15[4]) e o saneamento compartilhado do processo (art. 357, parágrafo 3º, CPC/15[5]).

Na fase de saneamento e organização do processo, cabe ao juiz: resolver as questões processuais pendentes, se houver; delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; definir a distribuição do ônus da prova; delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento (art. 357, CPC/15). Tem-se que a decisão saneadora é de grande importância para a marcha processual, já que visa a declarar a inexistência de vícios ou eliminar vícios sanáveis que possam afetar o resultado do processo, bem como delimitar a instrução probatória, em prol de uma decisão de mérito efetiva.

Entretanto, atualmente, a função organizatória do processo pode não ser de tarefa exclusiva do juiz. Além de o saneamento poder ser realizado pelo juiz em conjunto com as partes (art. 357, parágrafo 3º, CPC/15), é facultado às partes convencionarem sem a participação do juiz acerca da delimitação das questões de fato e de direito (art. 357, parágrafo 2º, CPC/15[6]), como forma de tornar o processo mais eficiente e contribuir para uma melhor gestão processual, permitindo um contraditório qualificado e, consequentemente, possibilitando uma decisão mais adequada, justa e célere.

Neste sentido, Eduardo Talamini[7] distingue a delimitação consensual entre ato de verdade e ato de vontade. Ato de verdade seria a convenção em que as partes definem os pontos que permanecem controvertidos, baseadas na realidade e não na vontade de delimitar as questões sobre as quais recairá o debate, podendo, inclusive, agregar questões de fato até então não deduzidas (Enunciado 427, FPPC[8] e art.3299, II, CPC/15[9]). Ao contrário, o ato de vontade é aquele em que as partes decidem não discutir determinados pontos.

Em relação ao ato de verdade, o juiz, ao homologar a convenção, o faz porque entende correta a delimitação feita pelas partes, estando vinculado a ela (art. 357, parágrafo 2º, CPC/15). Caso entenda estar equivocada a delimitação, poderá corrigi-la. Ainda, por se tratar de uma convenção típica, não necessitaria obedecer aos requisitos previstos pelo artigo 190, CPC/15, podendo ser firmada por incapazes, por exemplo[10].

Agora, com isso, podem as partes impor que o juiz assuma determinados fatos como verdadeiros? Elas podem limitar a cognição do juiz em matéria de fato?

Sendo a delimitação consensual um ato de vontade, as partes podem dispor de determinada questão, isto é, abrir mão sobre a discussão acerca de um determinado ponto da demanda. Nesse caso, o juiz homologará a convenção “não porque considera corretas as questões apresentadas, mas sim porque reconhece a autonomia das partes para dispor sobre aquele objeto”[11].

A autonomia das partes para dispor sobre o objeto relaciona-se à disponibilidade do direito material. Desse modo, a delimitação consensual por ato de vontade mostra-se uma convenção mista: processual e material. Assim como as partes podem confessar ou não impugnar determinados fatos alegados pela outra parte, podem convencionar para dispor sobre questões de fato, hipótese em que não será necessária a produção de prova (art. 374, CPC/15[12]).

Entretanto, deve-se distinguir a desnecessidade da impossibilidade da produção da prova sobre determinado fato. Isto, pois, a confissão ou não impugnação não tornam o fato verídico. Desse modo, as partes, através do saneamento consensual, não podem impor que o juiz assuma um determinado fato como verdadeiro.

Percebe-se que nem quando há a revelia o juiz fica vinculado à presunção de veracidade do fato não impugnado (como, por exemplo, prevê o artigo 345, IV, CPC/15[13]). Ainda, mesmo que o fato seja presumido verdadeiro, o juiz pode decidir em sentido diverso, inclusive se valendo do seu poder instrutório (art. 370, CPC[14]). Sendo assim, mesmo que as partes disponham sobre uma questão fática, o juiz possui poderes instrutórios que o permitem verificar a veracidade do fato, em prol da pacificação social e da decisão justa. Assim, elas podem dispor sobre questões de fato, desde que o direito material seja disponível, mas não podem convencionar acerca da veracidade de um fato, tendo-o como incontroverso por exemplo, na expectativa de vincular também o magistrado.

Destaca-se que o que ora se defende é a impossibilidade de as partes, ao negociarem sobre questões fáticas, imporem ao juiz a veracidade de um fato, ou seja, imporem aquilo que será (ou não) provado no decorrer da fase instrutória. Ou seja, apesar de poderem convencionar acerca da existência ou não de um fato, como ocorre com a confissão, o magistrado não está vinculado àquela mesma conclusão[15]. Por outro lado, frente ao princípio dispositivo, as partes podem optar por deixar de discutir um determinado fato ao abrirem mão daquele direito material, como ocorre se eliminarem a discussão acerca da existência de danos materiais, por exemplo. Isto, pois, o nosso sistema que visa não apenas à solução do caso concreto, mas também a pacificação social através de uma decisão de mérito justa. Uma decisão baseada em fatos sabidamente inverídicos não pode ser considerada uma decisão justa.

Por outro lado, nada impede que, através de uma convenção processual atípica (art. 190, CPC/15), as partes possam negociar sobre como aquilo será provado, isto é, sobre os meios de prova admitidos no processo, hipótese em que o juiz estaria vinculado àquilo pactuado[16].

Enquanto no primeiro caso o que se negociaria seria a veracidade do fato[17], no segundo caso a contratualização não versaria sobre a verdade em si, tendo em vista que a prova pode ser produzida por outros meios.[18]

Diante do exposto, podemos perceber que a delimitação consensual das questões de fato e de direito, realizada pelas partes, é um desdobramento do modelo cooperativo de processo, permitindo a sua participação ativa na organização do processo, em uma tentativa visível de proporcionar a divisão de trabalho entre os sujeitos, em busca de uma melhor gestão processual, propiciando um contraditório qualificado e, consequentemente, favorecendo uma decisão de mérito justa, efetiva e tempestiva. Portanto, devem ser observados os limites à delimitação consensual acerca das questões de fato como ato de vontade, em atenção aos fins almejados pelo direito processual.

[1] Art. 6o, CPC/15. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

[2] Art. 190, CPC/15. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

[3] Art. 373, CPC/15. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. (...)

§ 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:

I - recair sobre direito indisponível da parte;

II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

[4] Art. 471, CPC/15. As partes podem, de comum acordo, escolher o perito, indicando-o mediante requerimento, desde que: I - sejam plenamente capazes; II - a causa possa ser resolvida por autocomposição.

[5] Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: I - resolver as questões processuais pendentes, se houver; II - delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373; IV - delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; V - designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento.

(...)

§ 3º Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações.

[6] Art. 357, § 2º, CPC/15. As partes podem apresentar ao juiz, para homologação, delimitação consensual das questões de fato e de direito a que se referem os incisos II e IV, a qual, se homologada, vincula as partes e o juiz.

[7] TALAMINI, Eduardo. Um processo pra chamar de seu: nota sobre os negócios jurídicos processuais, disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/10/art20151020-17.pdf

[8] Enunciado 427, FPPC (art. 357, § 2º): A proposta de saneamento consensual feita pelas partes pode agregar questões de fato até então não deduzidas.

[9] Art. 329, II, CPC/15. O autor poderá: II - até o saneamento do processo, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, com consentimento do réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar.

[10] GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. Rio de Janeiro: Forense, 2016. – pg. 181

[11] TALAMINI, Eduardo. Um processo pra chamar de seu: nota sobre os negócios jurídicos processuais, disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/10/art20151020-17.pdf

[12] Art. 374, CPC/15. Não dependem de prova os fatos: I - notórios; II - afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária; III - admitidos no processo como incontroversos; IV - em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.

[13] Art. 345, IV, CPC/15. A revelia não produz o efeito mencionado no art. 344 se: IV - as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos.

[14] Art. 370, CPC/15. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.

[15] “Quem admite a veracidade de uma alegação controvertida de fato contrário a seus interesses (art. 348) está oferecendo ao juiz elementos para formar sua própria convicção, livremente (art. 131), podendo este até concluir de forma diversa se o contexto das provas a isso conduzir (…).” DINAMARCO, Cândido Rangel. Vocabulário do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 100

[16] Tal entendimento foi defendido anteriormente em: JOBIM, Marco Felix; MEDEIROS, Bruna. O impacto das convenções processuais sobre a limitação de meios de prova. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro. Ano 11. Volume 18. Número 1. pp. 325-345.

[17] A “verdade negociada” é expressão utilizada por Michele Taruffo em artigo que versa sobre a impossibilidade de se negociar acerca do direito probatório. Afirma o autor que: “O processo justo se é sistematicamente orientado a fazer com que se averigue a veracidade dos fatos relevantes para a decisão, e é injusto na medida em que obstaculiza ou limita esta averiguação”. TARUFFO, Michele. Verdade negociada? Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Vol. XIII. Trad. Pedro Gomes de Queiroz. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/download/11928/9340

[18] Beclaute Oliveira Silva: “Não será a verdade que está a ser negociada, mas os meios para descobri-la ou construí-la, a depender da perspectiva adotada”. SILVA, Beclaute de Oliveira da Silva. Verdade como objeto do negócio jurídico processual. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios Processuais. 2a ed., rev., atual., ampl. – Salvador, Ed. Juspodivm, 2016 – pg. 521
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