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Admissibilidade recursal: A postura das Cortes de Vértice na análise dos requisitos de admissibilidade de recursos interpostos na vigência do CPC/1973.

Por: Maria Angélica Feijó e Victória Hoffmann Moreira
Advogada, mestre em Direito Processual Civil pela UFRGS. Pesquisadora visitante da Universität Heidelberg (Institut für ausländisches und internationales Privat- und Wirtschaftsrecht) e Università degli Studi di Genova (Istituto Tarello per la Filosofia del Diritto).
Advogada, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, com menção em Direito Processual Civil. Pesquisadora bolsista na Università di Bologna (setembro/dezembro de 2015). Pesquisadora bolsista na Universidad de Salamanca (janeiro/abril de 2016).


Mesmo após a vigência do CPC/2015, os jurisdicionados têm se surpreendido com decisões do STJ, que ainda tem mantido um posicionamento formalista e uma jurisprudência defensiva ao não permitir a sanabilidade de vícios processuais, como aqueles referentes à representação processual.

Exemplo disso é a aplicação da Súmula 115 para os recursos interpostos antes da vigência do CPC/2015, que prevê: "na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos". A justificativa para a utilização dessa Súmula pelos Ministros do STJ é o Enunciado Administrativo 2 (aprovado pelo Plenário da Corte em 9 de março de 2016), que estabelece que, aos recursos interpostos contra decisões publicadas na vigência do CPC/1973, devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma prevista no antigo Código, com as interpretações dadas, até então, pela jurisprudência.

Ocorre que esse entendimento traduz uma confusão do STJ sobre a aplicação dos dispositivos do CPC/1973 e do CPC/2015. Isso porque não há dúvidas de que aos recursos interpostos na vigência do CPC/1973 o julgamento de admissibilidade deve respeitar as regras de admissibilidade recursal vigentes no momento da sua interposição. Contudo, outra coisa é a postura que o magistrado deve assumir no momento de decidir sobre a admissibilidade recursal (ainda que seja de recurso interposto na vigência do CPC/1973), pois a conduta exercida pelo magistrado na condução do processo está diretamente relacionada com a lei vigente no momento do julgamento. E, atualmente, a postura dos magistrados é orientada pelo princípio da cooperação[1] (art. 6º do CPC/2015), que é uma das principais mudanças trazidas pelo Novo Código nas suas normas fundamentais e orienta toda a condução do processo pelo magistrado, em todos os graus de jurisdição.

Uma das principais preocupações do legislador ao editar o CPC/2015 era a de primar pela resolução de mérito[2] da causa e a vedação de decisões surpresas. Essa percepção de processo acaba por conferir ao magistrado poderes-deveres na condução do processo e, para ser efetivo, necessita de uma mudança de comportamento[3] daqueles que integram a lide. É, portanto, o princípio da cooperação que informa a conduta que deverá ser assumida pelo magistrado em todos os momentos do processo, atribuindo a ele quatro relevantes deveres[4]: o de esclarecimento; prevenção; consulta e auxílio.

O processo conduzido pelos parâmetros do princípio de cooperação busca uma intensificação da atuação das partes e do julgador. O magistrado deve estar preocupado em zelar por um processo justo, que permita: “(i) a adequada verificação dos fatos e a participação das partes em um contraditório efetivo, (ii) a justa aplicação das normas de direito material, e (iii) a efetividade da tutela dos direitos, já que a inércia do juiz, ou o abandono do processo à sorte que as partes lhe derem, tornou-se incompatível com a evolução do Estado e do direito.”[5]. Nesse sentido, a atual dinâmica processual visa a equilibrar a participação do magistrado e das partes[6]. Em decorrência desse equilíbrio, ao magistrado é conferida uma atuação mais abrangente (no âmbito do processo de conhecimento, processo de execução e dos processos nos tribunais) e às partes um processo mais efetivo.

Especificamente sobre os poderes-deveres do relator em relação ao julgamento da admissibilidade recursal, é relevante mencionar que o CPC/2015 trouxe uma considerável mudança em relação ao CPC/1973. Essa mudança pode ser percebida pela leitura do artigo 932 do CPC/2015[7], que elenca poderes de direção e de decisão de questões de admissibilidade do recurso[8].

Observa-se no parágrafo único do referido artigo a inequívoca positivação do dever de prevenção[9] do relator para com as partes em relação à admissibilidade[10] de recursos[11]. Em razão do dever de prevenção[12], o relator, de forma a evitar a inadmissibilidade do recurso, concederá o prazo de 5 (cinco) dias para que o recorrente sane o vício (se for sanável) ou complemente a documentação exigível. O dever de prevenção permite ao relator apontar deficiências para que o recurso não seja inadmitido por um erro processual[13]. Afinal, o Novo Código foi estruturado para reforçar o poder-dever de prevenção, o que concretiza o modelo cooperativo de processo[14].

Importa destacar que o dever de prevenção une-se ao dever[15] de auxílio, de acordo com o disposto no já mencionado parágrafo único do artigo 932. Por meio desse poder-dever, o relator poderá auxiliar as partes na remoção ou superação de obstáculos que impeçam o deslinde adequado do processo[16]. Em decorrência do dever de auxílio, as partes, no desempenho de seus ônus e deveres no processo, poderão ter a colaboração do relator[17].

Os deveres de prevenção e auxílio são instrumentos utilizados pelo relator para evitar a jurisprudência defensiva e, consequentemente, buscar uma justa decisão de mérito. Diante disso, o CPC/2015 autoriza uma postura mais ativa do magistrado que previna situações como a extinção do processo e, no âmbito dos tribunais, a inadmissibilidade de recursos pelo relator.

Retomando o exemplo mencionado no início desta coluna, os Ministros do STJ devem exigir o cumprimento dos requisitos de admissibilidade previstos no CPC/1973 para admissão de Recursos Especial interpostos antes da vigência do CPC/2015, contudo, não podem mais assumir uma conduta estritamente formalista para a análise destes requisitos, tal como autorizava a antiga legislação processual. Hoje, os Ministros devem julgar a admissibilidade destes recursos adotando uma postura de julgamento de acordo com o CPC/2015, isto é, de acordo com o princípio da cooperação, na medida em que esta norma, em decorrência da regra do isolamentos dos atos, deve ser aplicada imediatamente aos processos sub judice.

Assim, não nos parece justificável a aplicação da Súmula 115, mesmo no julgamento de admissibilidade de recursos interpostos na vigência do antigo Código, visto que não pode mais subsistir o entendimento de que recursos interpostos por advogado sem procuração nos autos são inexistentes, na medida em que o magistrado tem o dever de oportunizar à parte a regularização processual, isto é, o saneamento de vício perfeitamente sanável[18].

[1] Sobre a origem do princípio da cooperação: KOCHEM, Ronaldo. Introdução às raízes históricas do princípio da cooperação (Kooperationsmaxime). Revista de Processo. Vol. 251/2016, jan/2016, p. 75 – 111.

[2]A busca pelo processo efetivo privilegia o princípio da primazia da decisão de mérito (positivado no artigo 4º do CPC/2015). Este é um princípio cujo objetivo nuclear é privilegiar a resolução do mérito das decisões, de forma a combater a jurisprudência defensiva. ZANETI JR. Hermes. Comentários ao art. 932. In: CABRAL, Antonio; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1.359.

[3] PEIXOTO, Ravi. Rumo à Construção de um Processo Cooperativo. Revista de Processo, ano 38, vol. 219. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2013, p. 96 refere que “Aqui, o processo cooperativo impõe uma mudança até cultural na magistratura, que deve se adaptar ao novo modelo, abandonando uma postura autoritária no momento de construção das suas decisões.”.

[4] SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o Novo Processo Civil. 2ª edição. Editora LEX. Lisboa, 1997, p. 65. Nesse sentido, refere que “Este dever (trata-se, na realidade, de um poder-dever ou dever funcional) desdobra-se, para esse órgão, em quatro deveres essenciais: - um é o dever de esclarecimento, isto é, o dever de o tribunal se esclarecer junto das partes quanto às dúvidas que tenha sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo, de molde a evitar que a sua decisão tenha por base a falta de informação e não a verdade apurada; - um outro é o dever de prevenção, ou seja, o dever de o tribunal prevenir as partes sobre eventuais deficiências ou insuficiências das suas alegações ou pedidos; - o tribunal tem também o dever de consultar as partes sempre que pretenda conhecer a matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido possibilidade de se pronunciarem, porque, por exemplo, o tribunal enquadra juridicamente a situação de forma diferente daquela que é a perspectiva das partes ou porque esse órgão pretende conhecer oficiosamente certo facto relevante para a decisão da causa; - finalmente, o tribunal tem o dever de auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento de ónus ou deveres processuais.”.

[5] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil. Vol. 1. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2015, p. 449.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil. Vol. 1. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2015, p. 497.

[7] O artigo3177 doCPC/20155 nesse mesmo sentido menciona que “Antes de proferir decisão sem resolução de mérito, o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício.”.

[8] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel; Código de Processo Civil Comentado. 2ª edição. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2016, p. 997.

[9] DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do Princípio da Cooperação no Direito Processual Civil Português. Coimbra Editora. Coimbra, 2010, p. 19 alude que “São quatro as áreas de aplicação do dever de prevenção: explicitação de pedidos pouco claros, o caráter lacunar da exposição dos fatos relevantes, a necessidade de adequar o pedido formulado à situação concreta e a sugestão de uma certa atuação da parte.”.

[10] Sobre a correção de vícios dos recursos ver TEMER, Sofia. Correção de vícios dos recursos: reflexões iniciais sobre os parâmetros para a regra de sanabilidade do CPC/2015. Disponível em: https://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/357104956/ncpc-correção-de-vicios-dos-recursos.

[11] Entendemos que o parágrafo único do artigo 932 prevê uma regra geral de sanabilidade de recursos. Nesse sentido, nos parece equivocado o enunciado interpretativo nº 197 elaborado pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) que diz: “aplica-se o disposto no parágrafo único do art. 932 aos vícios sanáveis de todos os recursos, inclusive dos recursos excepcionais”. (Grupo: Ordem dos Processos nos Tribunais e Recursos Ordinários; redação revista no VI FPPC-Curitiba).

[12] Conforme dispõe o Enunciado822 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (art. 932, parágrafo único; art. 938, § 1º) É dever do relator, e não faculdade, conceder o prazo ao recorrente para sanar o vício ou complementar a documentação exigível, antes de inadmitir qualquer recurso, inclusive os excepcionais. (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo).

[13] DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Volume 1. 18ª edição. Editora JusPODIVM. Salvador, 2016, p. 130.

[14] DIDIER JR. Fredie. Comentários ao art. 6.º. In: CABRAL, Antonio; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 21.

[15]ZANETI JR. Hermes. Comentários ao art. 932. In: CABRAL, Antonio; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1.359 de forma acertada refere que “No Código atual, tal auxílio passou a ser claramente um “dever”.”.

[16] REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Comentários ao Código de Processo Civil. Volume I. 2ª edição. Editora Almedina. Coimbra, 2004, pp. 267-269.

[17] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel; Código de Processo Civil Comentado. 2ª edição. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2016, p.155.

[18] Consoante com esse entendimento o Enunciado4633 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (“O art. 932, parágrafo único, deve ser aplicado aos recursos interpostos antes da entrada em vigor do CPC de 2015 e ainda pendentes de julgamento.”).
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