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As questões de ordem pública no CPC/15

Por: Trícia Navarro Xavier Cabral
Doutora em Direito Processual na UERJ. Mestre em Direito pela UFES. Juíza de Direito no Espírito Santo. Membro-efetivo do IBDP.


O presente artigo é o primeiro de uma sequencia de textos que se pretende fazer acerca das questões de ordem pública. O estudo do tema é considerado espinhoso pelos profissionais do direito, especialmente pela dificuldade de delimitar as suas hipóteses e uniformizar o seu tratamento. Na realidade a complexidade acadêmica inicia-se na própria conceituação do instituto. Por esta razão, faz-se necessário tratar dos principais aspectos do assunto em etapas, permitindo uma melhor compreensão pelos leitores.

Inicialmente vale destacar que a ordem pública costuma ser analisada sob diversos contextos, nos variados seguimentos do Direito, mas geralmente vem desacompanhada de conceitos precisos ou definições capazes de esclarecer as origens, as diretrizes e os efeitos que o assunto produz, não sendo diferente no campo do processo civil.

Com efeito, à ordem pública são atribuídos os valores extraídos de um consenso social e jurídico de um determinado ordenamento, flexíveis às eventuais mutações históricas e relacionados aos sentimentos de juridicidade, justiça e moralidade, motivados especialmente pelos direitos e garantias fundamentais, cuja inobservância gera um vício capaz de tornar ilegítimo o ato jurídico ou jurisdicional.

No processo civil, o estado de coisas denominado de ordem pública se expressa pelo controle da regularidade e desenvolvimento de atos e procedimentos, chamando a atenção dos envolvidos na relação processual para a presença de defeitos tidos como graves, intransponíveis, bem como para a necessidade de afastá-los, para se garantir a legalidade. Em outros termos, é com o resguardo da integridade e da adequação dos atos processuais e dos procedimentos que se assegurará o estado de ordem pública processual.[1]

Dessa forma, para se garantir a ordem pública processual é necessário a correta identificação e aplicação das normas processuais, bem como do exercício do controle da regularidade processual, por todos os sujeitos processuais, mas em especial pelo juiz, de modo adequado e tempestivo, visando resolver concreta e proporcionalmente os eventuais defeitos e suas consequências, a fim de que a prestação da tutela jurisdicional seja legítima e integral, com a pronúncia de mérito.

Não obstante, não se pode falar da ordem pública sem tecer considerações sobre o interesse público, eis que está intimamente ligado à própria noção de ordem pública, podendo, ainda, configurar uma de suas facetas. Nesse contexto as questões de ordem pública constituem espécies e formas de controle do regular desenvolvimento do processo, e se amparam em um interesse público graduável, de acordo com o momento e o espaço em que são observadas, podendo sofrer alterações inclusive em razão de política legislativa ou judiciária.

Ademais, o tratamento das questões de ordem pública nunca foi uniforme, tendo acompanhado os novos momentos processuais que, de tempos em tempos, sofreram modificações ideológicas, científicas e pragmáticas.

Nesse passo, tem-se que: 1) as questões que envolvem interesse público podem ser baseadas em questão de fato ou questão de direito; 2) a imperatividade das chamadas “questões de ordem pública” pode ser variada, justificando um tratamento diferenciado de cada uma; 3) as questões de ordem pública podem acarretar prejuízos distintos, de acordo com o caso concreto; 4) identificar imperatividades e prejuízos diferentes não significa aplicar a fungibilidade ou a flexibilização, tendo em vista que a questão, por si só, deve ser encarada na proporção de seu alcance e consequência, e não representar um aspecto único em todas as situações.

A cognição do magistrado durante o procedimento pode se dar em relação às questões prévias e em relação às questões de fundo. Na primeira, o juiz analisa a regularidade dos atos e do procedimento para fins de saneamento do feito, cuja atividade se denomina de chamado de juízo de admissibilidade. Já na segunda, o julgador examina as questões meritórias e resolve em definitivo a lide, denominado de juízo de mérito.

O juízo de admissibilidade, portanto, é a cognição exercida pelo magistrado sobre as questões capazes de comprometer o alcance do exame meritório, sendo que deve ocorrer a cada ato processual e também durante todo o procedimento.

Assim, compete ao juiz exercer o correto e tempestivo juízo de admissibilidade no feito, com a análise da presença dos requisitos de cada ato processual, bem como do procedimento como um todo, objetivando afastar eventuais defeitos e alcançar o exame do mérito. Trata-se de importante filtro processual, responsável por garantir a regularidade do procedimento, em benefício da boa administração da justiça e do equilíbrio das partes, legitimando a prestação jurisdicional. Registre-se que o juízo de admissibilidade é exercido pelo juiz, mas sem prejuízo de as partes poderem indicar o vício para provocar a manifestação judicial. Quanto à natureza jurídica da atividade, ela poderá ser declaratória ou constitutiva negativa, conforme o juízo de admissibilidade for positivo ou negativo, respectivamente.[2]

Além disso, o estudo acerca do juízo de admissibilidade envolve o seu momento, forma, objeto e consequências processuais. Com efeito, a eficiência do juízo de admissibilidade está diretamente ligada ao momento em que é exercido, já que quanto mais cedo forem detectadas as irregularidades processuais, mais aproveitamento se terá do processo, evitando-se atos inúteis decorrentes de um controle tardio. Ademais, a forma e o momento de alegação do defeito processual dependerão do tipo de questão envolvida e do interesse público a ela inerente, aplicando-se de modos diferentes para as partes e para o juiz. Outrossim, as consequências processuais e sua extensão dependerão da gravidade do defeito detectado, bem como de sua repercussão na cadeia procedimental.

Por sua vez, os reflexos do juízo de inadmissibilidade em relação ao ato ou ao procedimento são tratados pela teoria das nulidades processuais, que prevê sanções variáveis, mas que podem eventualmente comprometer o alcance de uma pronúncia de mérito.

Não obstante, a identificação e o tratamento das questões de ordem pública sempre foram atrelados à possibidade de cognição de ofício pelo juiz. Porém, essa relação entre a questão de ordem pública e a atividade de cognição de ofício pelo juiz nem sempre se confirma e não deve ser confundida.[3]

Isso porque as questões de ordem pública são aquelas cujo interesse público envolvido é elevado a ponto de justificar uma intervenção corretiva do juiz, em nome da boa administração da justiça. Já as questões cognoscíveis de ofício, embora geralmente apresentem boa dose de interesse público, podem ser criadas para atender à política legislativa ou judiciária, não se identificando, necessariamente, com o conteúdo e a densidade das questões ou matérias afetas à ordem pública processual.

No âmbito do processo civil, as questões de ordem pública são relacionadas às condições da ação, os pressupostos processuais e outros requisitos processuais e materiais capazes de impedir o alcance de um pronunciamento de mérito, como os específicos de admissibilidade e os recursais. Quanto às hipóteses mencionadas, o CPC/2015 eliminou a impossibilidade jurídica do pedido da categoria das condições da ação, passando a considerá-la integrante do próprio mérito da causa. Registre-se, ainda, que as questões de ordem pública material, embora se refiram ao direito substancial, também podem ser conhecidas de ofício pelo juiz em razão do interesse público declarado pela lei ou pela própria jurisprudência.

Dessa forma, uma matéria que hoje é tratada como direito disponível pode amanhã passar a integrar o rol de questões cognoscíveis de ofício, o que não terá o condão de transformá-la em uma questão de ordem pública, mas apenas de conferir à ela um tratamento diferenciado pelo magistrado. Um exemplo disso foi o que ocorreu com a prescrição, que antes constituía matéria que dependia de arguição pela parte interessada e que com o Código Civil de 2002 passou a poder ser conhecida de ofício. Ora, esse poder cognitivo dado ao juiz em razão de política legislativa não tornou a prescrição uma questão de ordem pública, ou seja, aquela em que há um efetivo comprometimento do desenvolvimento do processo, e tanto é assim que ainda cabe a renúncia, embora ela passasse a ser inserida em um regime jurídico diferenciado.

Portanto, o poder de cognição de ofício de certas matérias pelo juiz não se confunde com as questões de ordem pública processual e não transforma estas últimas naquelas.

Em outro viés, observa-se ser equivocada a afirmação de que as questões de ordem pública podem ser conhecidas em qualquer tempo ou grau de jurisdição.
Isso porque, uma vez decidida expressamente a questão, preclui para o juiz a possibilidade de reanálise sem que haja algum fato novo que justifique, sob pena de ferir o princípio da segurança jurídico-processual e inclusive abalar a ordem pública processual.

Registre-se ainda sobre o aspecto preclusivo do pronunciamento judicial[4], que a preclusão quanto às matérias já decididas aplica-se em todos os graus de jurisdição[5], só podendo ser modificada pela via recursal. Note-se, por sua vez, que ocorre a preclusão independentemente do sistema de agravo que o sistema processual pretenda adotar, ou seja, mais rígido como o CPC/73 ou mais flexível como o previsto no CPC/2015.[6]

Dessa forma, a expressão “a qualquer tempo ou grau de jurisdição” não condiz com o tratamento que deve ser dado ao assunto, servindo apenas para que juízes ajam autoritariamente e para que advogados manipulem o processo com estratégias desleais.

Ainda no que concerne ao tratamento das questões de ordem pública, o CPC/2015 prevê dois dispositivos que simplificam as formalidades e garantem a efetividade processual. Tratam-se dos artigos 339, que facilita a identificação e correção da parte ilegítima, e do artigo 340, que, em caso de alegação de incompetência absoluta, admite que o protocolo da contestação pelo réu seja feito no foro de seu próprio domicílio.

Por fim, insta salientar que o CPC/2015 reforça o princípio da sanabilidade dos atos processuais, incentivando, assim, a superação de qualquer tipo de vício processual, até mesmo os mais graves, como é o caso da ausência de citação.
Portanto, esses são os aspectos gerais sobre o tema, que voltará a ser explorado em outros artigos da coluna.
[1] CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Ordem pública processual. Brasília: Gazeta Jurídica, 2015.
[2] Nesse sentido: DIDIER JR., Fredie Didier. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 41.
[3] No mesmo sentido, cf.: APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem pública e processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2011. (Coleção Atlas de Processo Civil. - Coord. Carlos Alberto Carmona), p. 114-115.
[4] “Sob uma perspectiva puramente literal, o artigo 267, § 3º, de fato, não parece autorizar o entendimento de que o exame daquelas questões não está sujeito a qualquer estabilização. O que o texto legal afirma é a possibilidade de o juiz conhecer de ofício tais questões, em qualquer tempo e grau de jurisdição. E a reforçar a impressão de que as questões decididas fiquem efetivamente fora de nova cognição judicial está o já referido artigo 471 do Código de Processo Civil, que é aplicável não apenas às decisões de mérito finais, mas também às interlocutórias. Da mesma forma, ao dizer que “nenhum juiz decidirá novamente” tais questões, o dispositivo pretende incluir também o próprio juiz da causa, que proferiu a decisão e é, portanto, o primeiro a estar por ela vinculado.” APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem pública e processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2011. (Coleção Atlas de Processo Civil. - Coord. Carlos Alberto Carmona), p. 171.
[5] “Não se permite que o tribunal, no julgamento do recurso, reveja questão que já fora anteriormente decidida, mesmo as processuais, e em relação à qual se operou a preclusão. O que se permite ao tribunal é conhecer, mesmo sem provocação das partes, das questões relativas à admissibilidade do processo, respeitada, porém, a preclusão. Parece haver uma confusão entre a possibilidade de conhecimento ex officiode tais questões, fato indiscutível, com a possibilidade de decidir de novo questões já decididas, mesmo as que poderiam ter sido conhecidas de ofício. São coisas diversas: a cognoscibilidade ex officio de tais questões significa, tão-somente, que elas podem ser examinadas pelo Judiciário sem a provocação das partes, o que torna irrelevante o momento em que são apreciadas. Não há preclusão para o exame das questões, enquanto pendente o processo, mas há preclusão para o reexame.” (DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 87. Em sentido contrário, entende Flávio Cheim Jorge, vide: JORGE, Flávio Cheim; DIDIER JR.; Fredie; RODRIGUES, Marcelo Abelha. A nova reforma processual. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 176).
[6]CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Preclusão e decisão interlocutória no projeto do novo CPC. In: ROQUE, André Vasconcelos; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. (Org.). O projeto do novo Código de Processo Civil: uma análise crítica. 1. Ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, v. 1, p. 195-235.
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