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Julgamento parcial de mérito no CPC/2015: Vamos deixar tudo como está?

Por: Rogéria Dotti
Doutoranda e mestre pela Universidade Federal do Paraná, secretária geral Adjunta do IBDP, advogada.


O processo civil brasileiro vive, felizmente, uma fase de busca de efetividade. Há uma clara tendência à aceleração da atividade jurisdicional e uma aptidão para a produção de resultados úteis na sociedade[i]. Nesse contexto, o julgamento parcial de mérito traduz uma relevante inovação. Ele alia a celeridade à cognição exauriente, apta à formação da coisa julgada. E isso é extremamente positivo. Não apenas porque permite antecipar uma parte da sentença final, mas também porque estimula a própria solução consensual das pretensões remanescentes.

No sistema do Código de 1973, vigorava o princípio da unicidade do julgamento, segundo o qual a sentença só poderia ser proferida em um único ato, ao final do processo[ii]. Justamente por isso, a decisão parcial de mérito era tratada como tutela antecipada, apesar de se basear em cognição exauriente (art. 273, § 6º, com a alteração da Lei nº 10.444, de 07 de maio de 2002). Mas parte da doutrina já defendia, com razão, a possibilidade de sentença parcial, ainda que não houvesse regra expressa[iii]. Em maio de 2015, contudo, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que a sentença parcial não seria compatível com o sistema então em vigor[iv].

Agora, contudo, a realidade é outra. O CPC de 2015 permite o tão desejado fracionamento do mérito (art. 356 e art. 354, § único). Os requisitos são: a existência de um pedido ou parcela dele que se mostre incontroverso ou que dispense a necessidade de instrução.

Saliente-se que os pedidos devem ser autônomos, isto é, a cumulação deve ser própria e simples, ou então o pedido deve ser passível de decomposição. Caso de grande aplicação prática é o decreto imediato do divórcio e o posterior julgamento dos pedidos de partilha e alimentos[v]. Outro exemplo é a pretensão de cobrança de valor em dinheiro, sempre que o réu não contestar a obrigação propriamente dita, mas apenas o seu montante.

Mas as hipóteses de decisão parcial de mérito não se limitam ao disposto no art. 356. O parágrafo único do art. 354 também prevê duas circunstâncias que a autorizam: prescrição ou decadência e homologação do reconhecimento do pedido, renúncia ou transação (art. 487, II e III). A propósito, em interessante julgado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve decisão que reconhecera a ocorrência da prescrição em relação à indenização por abandono material e determinara o prosseguimento do feito em relação à investigação de paternidade[vi].

Saliente-se que, uma vez presentes as circunstâncias autorizadoras, o fracionamento da decisão de mérito constitui verdadeiro dever do magistrado. Não se trata de mera faculdade posta à disposição do juiz ou das partes[vii]. Isso porque a razoável duração do processo e a eficiência constituem valores fundamentais para aplicação de todas as regras processuais (CPC, arts. 4º e 8º). A ideia fundamental é a de que o tempo do processo não pode prejudicar o autor que tem razão[viii].

Por se tratar de decisão interlocutória, o recurso cabível contra o julgamento parcial de mérito é o agravo de instrumento (CPC, art. 356, § 5º e art. 1.015, inciso II). Isso confere eficácia imediata ao provimento[ix], ao contrário da sentença que se submete ao regime da apelação, com efeito suspensivo (CPC, art. 1.012).

Assim sendo, a decisão parcial de mérito é passível de execução provisória, inclusive com a dispensa do oferecimento de caução (CPC, art. 356, § 2º), o que a torna mais vantajosa que o próprio cumprimento de sentença, sujeito à caução (art. 520, IV). Todavia, não há sentido em dispensar a caução na decisão parcial e exigi-la em relação à sentença. Daí porque o Enunciado nº 49 da Escola Nacional de Formação de Magistrados já antecipa uma tendência de relativização dessa dispensa: “No julgamento antecipado parcial de mérito, o cumprimento provisório da decisão inicia-se independentemente de caução (art. 356, § 2º, do CPC/2015), sendo aplicável, todavia, a regra do art. 520, IV”.

Mas a decisão parcial de mérito tem suscitado outras questões polêmicas. A primeira diz respeito ao reexame necessário. Ele se aplica ao julgamento parcial? O legislador, no art. 496, referiu-se apenas à “sentença”, não fazendo menção à decisão interlocutória de mérito. Contudo, a análise sistêmica mostra que elas têm exatamente o mesmo conteúdo. Não há diferença em termos de grau de importância, respeito ao contraditório ou nível de cognição. Ambas têm exatamente a mesma carga decisória, ainda que sejam proferidas em momentos processuais distintos. Daí porque, mesmo na ausência de previsão expressa, a decisão parcial de mérito contra a Fazenda também se sujeita ao reexame necessário[x]. Esse é, aliás, o teor do Enunciado nº 17 do Fórum Nacional do Poder Público[xi].

O mesmo pode ser dito em relação ao recurso adesivo. Embora o art. 997, § 2º, II do Código autorize sua aplicação apenas nos casos de apelação, de recurso extraordinário e de recurso especial, não há dúvida que o recurso contra a decisão parcial de mérito também comporta esta interpretação extensiva. Por uma questão de coerência, deve-se então admitir o agravo de instrumento adesivo[xii].

E as questões anteriores não agraváveis? Devem ser trazidas no agravo de instrumento e nas contrarrazões? A resposta é positiva. Cabe aqui a aplicação analógica do art. 1.009, § 1º. Esse é aliás o teor do Enunciado nº 611 do FPPC[xiii].

Questão mais delicada surge quando se examina o prazo para eventual ação rescisória contra a decisão parcial de mérito. Em que momento terá início a fluência dos dois anos? Do trânsito em julgado da própria decisão ou da última decisão do processo (CPC, art. 975)? Ao que tudo indica, a finalidade do Código foi encerrar a divergência que surgira no sistema de 1973 e que levou à edição da súmula nº 401 do STJ[xiv]. Pensava-se, naquele primeiro momento, em afastar o risco de não conhecimento do recurso[xv], mas não propriamente em impedir o trânsito em julgado em capítulos[xvi], como depois passou a entender o STJ. Agora, o entendimento é outro. Como a decisão parcial de mérito implica em verdadeira cisão no julgamento, não há como negar que o prazo para a ação rescisória deve ser contado a partir dessa própria decisão[xvii]. Portanto, quando o art. 975 menciona última decisão proferida no processo, deve-se ler: última decisão referente a essa parte do processo.

No que diz respeito aos honorários advocatícios, o Código não traz nenhuma previsão específica. A omissão, porém, não significa que os mesmos não sejam devidos. Ainda que o caput do art. 85 refira-se apenas à sentença, toda a lógica de equiparação dos pronunciamentos judiciais de mérito leva a essa conclusão. Aplica-se aqui o mesmo argumento utilizado para admitir a remessa necessária. Tanto no art. 496, como no art. 85, o Código se refere apenas à sentença, embora ambos incidam sobre as duas formas de decisões de mérito.

De igual forma, deverá ser admitida a sustentação oral no recurso referente ao julgamento parcial. O art. 937, inciso I do Código de 2015 prevê a possibilidade da defesa oral no recurso de apelação, ou seja, na impugnação à sentença. Assim sendo, igual oportunidade deve ser oferecida no recurso de agravo de instrumento atinente ao mérito (art. 1.015, II). Não há aqui qualquer fator de discrimen a autorizar a distinção[xviii].

Lembre-se ainda que a suspensão do processo em virtude do IRDR (art. 982, I) não impede o prosseguimento em relação ao pedido cumulado, consoante Enunciado nº 205 do FPPC[xix], nem tampouco o julgamento antecipado da parte autônoma do pedido[xx].

Em síntese, a coerência do sistema exige que se apliquem ao julgamento parcial de mérito: o reexame necessário (art. 496); o agravo de instrumento adesivo (art. 997, § 2º, II); o termo inicial para a rescisória (art. 975); a fixação de honorários advocatícios (art. 85) e a sustentação oral no julgamento do respectivo agravo de instrumento (art. 937).

Por fim, vale destacar que a decisão parcial de mérito representa enorme avanço no que diz respeito à gestão processual, à eficiência e à celeridade. Mas, como toda inovação legislativa, ela depende da boa-vontade dos operadores do direito. De nada adiantará a previsão do art. 356 se permanecer a ideia da unicidade do julgamento. Ou seja, mesmo com tantos motivos para deixar tudo como está, é preciso compreender – como diz a canção – que já mudaram as estações.




[i] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: volume I. 8. ed., rev. e atual. segundo o Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 429.

[ii] A origem era a antiga lição de Chiovenda della unità e della unicità della decisione, a qual já se encontra relativizada há bastante tempo no direito italiano (art. 277 do Codice di Procedura Civile). MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 148 e 149. No mesmo sentido, DORIA, Rogéria Dotti. A tutela antecipada em relação à parte incontroversa da demanda. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 93.

[iii] TALAMINI, Eduardo. “Saneamento do processo”, in RePro, vol. 86, 1997, item 20 e seguintes.

[iv] STJ – Resp. 1.281.978-RS, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 05.05.2105.

[v] Enunciado nº 18 do IBDFAM: “Nas ações de divórcio e de dissolução da união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do mérito (art. 356 do Novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a discussão de outros temas”.

[vi] TJRS – A.I. 70071267009, 8ª Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, j. em 09.03.2017.

[vii] Nesse sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. Vol. I, 57. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 842.

[viii] É o que defende há muitos anos Luiz Guilherme Marinoni. (MARINONI, Luiz Guilherme. O novo processo civil/ Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. 2. ed., rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 253).

[ix] Marcelo Pacheco Machado afirma que diante desse novo regime todo mundo só vai querer julgamento antecipado parcial de mérito. (MACHADO, Marcelo Pacheco. “Novo CPC: só quero saber de julgamento parcial do mérito!”, http://jota.uol.com.br/novo-cpc-so-quero-saber-de-julgamento-parcial-do-merito, acesso em 11 de setembro de 2016).

[x] WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil: cognição jurisdicional, volume 2/Luiz Rodrigues Wambier, Eduardo Talamini. 16. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 458.

[xi] “A decisão parcial de mérito proferida contra Fazenda Pública está sujeita ao regime da remessa necessária”.

[xii] Essa também é a conclusão de Luís Renato Avezum, in https://jota.info/artigos/existencia-de-agravo-de-instrumento-adesivo-26072016, acesso em 25 de junho de 2017.

[xiii] Enunciado nº 611 do FPPC: “Na hipótese de decisão parcial com fundamento no art. 485 ou no art. 487, as questões exclusivamente a ela relacionadas e resolvidas anteriormente, quando não recorríveis de imediato, devem ser impugnadas em preliminar do agravo de instrumento ou nas contrarrazões”.

[xiv] Súmula nº 401: O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial.

[xv] WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil: cognição jurisdicional, volume 2/Luiz Rodrigues Wambier, Eduardo Talamini. 16. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 844.

[xvi] Note-se que o Supremo Tribunal Federal já admitia o trânsito em julgado em diferentes momentos processuais (STF, Pleno, AR 1.699-AgRg, Relator Ministro Marco Aurélio, j. 23.06.2005).

[xvii] Nesse sentido, WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo/coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier, Maria Lúcia Lins Conceição, Leonardo Ferres da Silva Ribeiro, Rogério Licastro Torres de Mello. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 621 e THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. Vol. I, 57. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1112.

[xviii] A propósito, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Paraná, adaptando-se às mudanças do CPC/2015, passou a autorizar a sustentação oral nessa hipótese (art. 226, § 1º).

[xix] “Havendo cumulação de pedidos simples, a aplicação do art. 982, I e § 3º, poderá provocar apenas a suspensão parcial do processo, não impedindo o prosseguimento em relação ao pedido não abrangido pela tese a ser firmada no incidente de resolução de demandas repetitivas”.

[xx]MAZZOLA, Marcelo. http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI237872,31047-E+possivel+o+julgamento+parcial+do+merito+das+ac...
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