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NCPC: principais alterações da decisão de saneamento e organização do processo

Por: Mariana Ferradeira Sales Bezerra
Advogada, graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pós-graduada em Direito Processual Civil e em Direito Privado Patrimonial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), mestranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


Como diversos outros pontos, o saneamento do processo foi alvo de profundas alterações no novo Código de Processo Civil.

A previsão de tal importante momento processual era tímida. Limitava-se o legislador a prescrever, no § 2º, do art. 331, que, “se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação [na audiência a que fazia alusão o caput do mesmo artigo], o juiz [fixaria] os pontos controvertidos, [decidiria] as questões processuais pendentes e [determinaria] as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário”. Se o direito em litígio não admitisse transação ou se as circunstâncias da causa evidenciassem a sua improbabilidade, recorreríamos ao § 3º, que possibilitava o imediato saneamento pelo juiz. Na ocasião, também deveria ser determinada a produção da prova, nos termos do § 2o transcrito.

Uma boa maneira de analisar e perceber as alterações de uma legislação revogada para outra que a sucedeu é destrinçar o texto legal. É o método que doravante será adotado.

A essência da fase em análise se manteve, isto é, permanece o saneamento como o momento processual adequado para a correção de defeitos e organização do processo[i]. Significa dizer que, após a fase postulatória e a constatação de que não é caso de extinção do processo (art. 354) ou de julgamento antecipado do mérito (total ou parcial – art. 355 e art. 356, respectivamente), o juiz, de acordo com o art. 357, enfrentará eventuais questões processuais pendentes (inciso I)[ii]; delimitará as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos[iii] e evitando-se atos inúteis na fase instrutória vindoura (inciso II); definirá a distribuição do ônus da prova, abraçando a técnica de dinamização do ônus probatório, observado o art. 373 (inciso III)[iv]; delimitará as questões de direito relevantes para a decisão do mérito (inciso IV)[v]; e, finalmente, designará, se necessário, audiência de instrução e julgamento (inciso V).

Persiste, portanto, a finalidade do saneamento de regularizar o processo, para que no seu prosseguimento não haja vícios. Devem ser aclarados os pontos que, de certa forma, dificultam ou impedem o atingimento do mérito da demanda, degrau necessário para que seja alcançada a pacificação social, um dos escopos do processo. O que se pretende é sanar defeitos e evitar a perda de tempo com a resolução de questões e incidentes processuais que muita vez não guardam relação com o mérito e possuem contornos meramente protelatórios. Outrossim, na ocasião, o juiz também preparará, elucidará, discriminará e organizará as atividades a serem desenvolvidas nas fases subsequentes do processo. Justificado, portanto, ser a decisão de saneamento e de organização do processo.

Quanto ao momento apropriado para fazê-lo, não era tormentoso o entendimento de que o sistema processual não consagra a obrigatoriedade do despacho saneador em momento único; os atos de saneamento devem ser praticados pelo julgador desde o recebimento da petição inicial, não há por que serem concentrados em um único ato, desde que surja a necessidade de corrigir qualquer desvio prejudicial à apuração dos fatos discutidos e à aplicação das leis suscitadas.[vi]

Conquanto reconhecida a sua extrema importância, a ausência do saneamento (em verdade, do momento particular designado pelo legislador no iter procedimental para a prolação da decisão específica saneadora), por si só, na vigência do código revogado, não acarretava a nulidade da sentença.[vii] Não era, no entanto, o recomendável, em razão do que se expôs, e passa a não sê-lo com mais razão à luz do novo diploma processual, notadamente em razão do esforço mútuo que todos os sujeitos do processo devem despender para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. Os sujeitos devem caminhar juntos, de mãos dadas, sem que aqui se empregue nenhum tipo de ironia, ou seja, sem artimanhas, sem “cartas na manga”, para que alcançada a solução integral do mérito.

O § 1º, do dispositivo em análise traz uma relevante novidade: a possibilidade de, após o saneamento, as partes pedirem esclarecimentos ou ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias.[viii] Vale chamar atenção para uma questão: teremos, por força do citado dispositivo, duas decisões, que podem ser idênticas, quando são feitos apenas esclarecimentos e é mantida a primeira decisão, ou distintas, quando o juiz procede a ajustes. Se se tratar de decisão agravável – prevista, portanto, no rol taxativo do art. 1.015 -, quando deverá ser interposto o recurso? Ao pedido revisional não é conferido o efeito interruptivo para a interposição do recurso, do que depreender-se-ia a preclusão, caso mantida a decisão anterior e escoado o prazo estipulado pelo § 5º, do artt. 1.003? Ou deve ser admitida a recorribilidade em ambas as decisões interlocutórias, independentemente do teor da segunda?[ix] O silêncio implicará a estabilidade da decisão, evitando-se retrocessos processuais.

Por meio de negócio processual, as partes podem delimitar as questões de fato, sobre as quais recairá a atividade probatória, e de direito relevantes para a decisão do mérito (art. 357, § 2º). Se homologada a avença, estarão vinculadas as partes e o juiz.[x] Como ocorre em acordo firmado entre as partes sobre o objeto litigioso, seja extra-autos submetido a posterior homologação pelo juízo ou em audiência, o saneamento consensual não precisa ser adstrito aos delineamentos objetivos postos no processo, isto é, pode ser mais amplo e agregar questões de fato e de direito até então não deduzidas.[xi]

Da mesma maneira, ao demarcar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito, no saneamento do processo (art. 357, inciso IV), pode o juiz elastecer o exame com outras matérias, ainda que não suscitadas pelas partes, para resolver as questões de direito relevantes para a decisão de mérito[xii]. Ditos contornos facilitam a apuração futura de observância da regra da congruência (art. 141, CPC) e devem estar em harmonia com aqueles eventualmente estabelecidos pelas partes e homologados pelo juízo, haja vista a sua vinculação. Deve o juízo conceder prévia oportunidade para as partes se manifestarem, em apreço aos art. 9º e 10, do Código, de modo que possam influenciar na tomada de decisão e não sejam surpreendidas com o teor decisório.

O § 3º traz um dos inúmeros reflexos do princípio da cooperação espraiados ao longo do código[xiii]: a possibilidade de o magistrado designar audiência para que o saneamento seja um ato conjunto, ocasião em que as partes, sujeitos mais próximos dos elementos e dos detalhes do litígio, deverão integrar e esclarecer suas alegações[xiv], bem como levar o respectivo rol de testemunha (art. 357, § 5º)[xv], para que possam ser apresentadas, desde logo, eventuais objeções. Dito ato processual ficou conhecido na doutrina como saneamento compartilhado (ou em cooperação), uma inegável forma plurilateral de otimizar o processo.

A qualidade do provimento jurisdicional e o tempo são preocupações constantes do legislador e devem os olhos dos julgadores estar voltados para eles a todo instante. É salutar para o bom caminhar e desfecho da controvérsia que o processo seja arrumado, organizado preferencialmente de forma conjunta, tal como previsto no § 3º do art. Em exame.

Ainda sobre a audiência supracitada, para evitar os atrasos e as caóticas pautas que os advogados e as partes enfrentam na prática forense, o legislador previu que deverá ser respeitado o intervalo mínimo de uma hora entre uma e outra. A intenção foi boa, a concretização, impossível e utópica, em razão da grande litigiosidade que assola o Poder Judiciário.

Na mesma linha, ou seja, com os olhos voltados para o menor tempo para o trâmite processual e para a eficiência, que passou a ser prevista no art. 8º, do Código, o legislador ressaltou a proeminência do calendário para a observância dos prazos estipulados pelo art. 465, do CPC, para a produção de prova pericial (art. 357, § 8º).

Assim como pretende o art. 191[xvi], que dispõe sobre a fixação de calendário para a prática dos atos processuais entre os sujeitos processuais, que àquelas datas estarão vinculados, a finalidade é fazer desaparecer o chamado “tempo morto”, lapso entre a determinação da intimação e a concretização do ato, haja vista a dispensa, nesses casos, da intimação das partes para a prática de ato ou a realização de audiência cujas datas tenham sido designadas no calendário (art. 191, § 2º). Uma vez mais, se vê uma boa intenção para inumar grave problema, mas só com o tempo será possível afirmar se não se trata de previsão inexecutável operacionalmente em razão – de novo - da quantidade cavalar de ações judiciais distribuídas diariamente em todo o território nacional.

A fase de saneamento também é marcada como limite no iter procedimental pra alteração objetiva da demanda, desde que a outra parte com ela consinta. Trata-se da estabilização da demanda prevista no inciso II, do art. 329, do CPC. Sobre o tema, por fugir do escopo deste texto, vale apenas apontar uma breve reflexão sobre a necessidade de equilíbrio entre tal regra e as imposições reais. Muita vez, o juízo se depara, no curso do processo, com a desvinculação da pretensão inicialmente formulada da realidade fática subjacente à relação processual. Por isso, é preciso, excepcionalmente, admitir maior flexibilidade para a mutação da ação, mesmo após o limite trazido pelo legislador do saneamento do processo, para que o julgamento reflita o estado de fato da lide no momento da entrega da prestação jurisdicional.[xvii]

Ainda acerca da modificação objetiva da demanda, podem as partes, por meio de negócio jurídico processual, estabelecer que anuem com eventual alteração da causa de pedir ou do pedido até o saneamento, de modo a dispensar o consentimento posterior. Nesse sentido, o enunciado 490, do FPPC. Persistirá, claro, a necessidade da intimação para o exercício do contraditório no prazo de 15 dias, tal como disposto no inciso II, do artigo 329, do CPC.

Finalmente, em relação ao inconformismo que pode decorrer da decisão de saneamento e de organização do processo, é preciso verificar as hipóteses dispostas no art. 1.015, que elenca de maneira taxativa do cabimento do agravo de instrumento e traz, por exemplo, a decisão que redistribui o ônus da prova (art. 1.015, inciso XI). Caso a decisão não desafie agravo de instrumento, o pedido de reforma deve ser suscitado em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões, tal como determina o § 1º, do art. 1.009, CPC.

[i] Aliás, o artigo3577, doNCPCC, ao qual correspondem osparagrafoss do art. 3311 do código revogado, passou a estar contido na seção intitulada de “Do saneamento e da organização do processo”; topograficamente é a última das atinentes ao capítulo que traz as hipóteses de “julgamento conforme o estado do processo”, de forma lógica. Sem dúvida, a alteração deve ser vista com bons olhos, por trazer clareza, e por separar a fase em análise da “audiência preliminar”, que tinha por fim a autocomposição e era muito mal aproveitada. A importante audiência de conciliação ou de mediação passa a ter sede própria e a estar mais à frente no iter procedimental.

[ii] Se houver defeitos processuais sanáveis, deve ser concedido o prazo de até 30 dias para correção (art. 352, CPC).

[iii] Importante notar que a especificação de provas pode ter lugar mesmo quando não oferecida contestação pelo réu. É que, se se tratar de hipótese em que a revelia não produz efeitos (art. 345) ou de fatos despidos de mínima verossimilhança, o autor deverá apontar as provas que pretende produzir em até 5 dias.

[iv] O ônus da prova incumbe a quem tem melhores condições de produzi-la. Não se trata de algo novo no ordenamento jurídico brasileiro. A técnica da inversão do ônus da prova a que se refere o art. 6º, VIII, do CDC é clara aplicação da referida técnica. Sobre o momento adequado para a inversão, o Superior Tribunal de Justiça já havia pacificado o entendimento de se tratar de regra de instrução e não de julgamento. A fase de saneamento do processo seria o momento mais adequado. (REsp 1395254/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 15/10/2013, DJe 29/11/2013; EREsp 422.778/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Rel. P/ acórdão Min. Maria Isabel Gallotti, 2ª S., j. 29/02/2012, DJe 21/06/2012) Note-se: o momento da redistribuição pode ser qualquer um, desde que se permita à parte se desincumbir do ônus que acaba de lhe ser distribuído, mas parece ser mais oportuna a redistribuição feita por ocasião da decisão de saneamento e organização do processo, opção adotada pelo novo CPC.

[v] Aqui, cabe uma crítica ao enunciado administrativo300, da Segunda Vice-Presidência, do TJMG, aprovado em Sessão Plenária, realizada no dia 26.02.16, pelos magistrados que integraram os Grupos de Trabalhos do Fórum de Debates e Enunciados sobre oNCPCC, segundo o qual “As questões suscitadas pelas partes e afastadas, por irrelevância para a decisão de mérito, na decisão saneadora não necessitam ser reapreciadas na sentença”.

[vi] “(...) a atividade de saneamento do magistrado não se esgota nessa fase, que se caracteriza, apenas, pela concentração de atos de regularização do processo. É que, desde o momento em que recebe a petição inicial, pode o magistrado tomar providências para regularizar eventuais defeitos processuais (...). O dever de o magistrado sanear o processo deve ser exercido ao longo de todo o procedimento, mas há uma fase em que essa sua atuação revela-se mais concentrada”. (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17ª ed. Revista, ampliada e atualizada. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 685).

[vii] Sob a égide doCPCC/73, era o posicionamento do STJ no sentido de que a falta do saneamento somente seria nula quando demonstrado evidente prejuízo para uma das partes. O entendimento pode ser conferido, por exemplo, em STJ, AgRg na MC 25519 / DF, 2ª T., Rel. Min. Humberto Martins, DJ 08.03.16 e em STJ, EDcl no AgRg no Resp 724.059/MG, 1ª T., Rel. Min. José delgado, DJ 3.4.2006. Também nesse sentido, inúmeros acórdãos do TJRJ. Outro ponto distinto, que não se questiona, é o momento, a não concentração em ato único (e não ausência), conforme ressaltado.

[viii] Sobre o tema, o enunciado administrativo277, da Segunda Vice-Presidência, do TJMG. Confira-se: “Cabe pedido de esclarecimentos e solicitação de ajustes em relação à decisão saneadora prevista no caput do artigo3577, sendo inadmissíveis os embargos de declaração”.

[ix] O professor Fredie Didier, sem responder especificadamente aos questionamentos formulados, afirma que essa preclusão se limita à organização da atividade instrutória. Se decisão agravável ou apelável, deverá ser interposto o respectivo recurso, com o que concordamos. Ademais, defende que o prazo de 5 dias somente se aplica se proferida a decisão por escrito; se em audiência, com a presença das partes, os esclarecimentos devem, a seu ver, ser requeridos até o final da sessão. (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17ª ed. Revista, ampliada e atualizada. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 693).

[x] Aqui, diversamente do que ocorrerá em grande número de negócios jurídicos processuais, a esfera jurídica do magistrado é afetada, por meio da restrição de seus poderes-deveres, do que advém a necessidade de homologação.

[xi] Nesse sentido, o enunciado4277, do FPPC. Confira-se: “(art. 357, § 2º) A proposta de saneamento consensual feita pelas partes pode agregar questões de fato até então não deduzidas.” A possibilidade de ajustes também decorre do inciso II, do art. 3299, CPCC.

[xii] Sobre o tema, vale o aprofundamento acerca das matérias cognoscíveis de ofício e das tão aclamadas quanto indefinidas matérias classificadas como de ordem pública, para que se estabeleça o cerco a ser respeitado pelo juiz em relação ao que não fora inserido nos autos pelas partes.

[xiii] A cooperação traz, em primeiro lugar, a ideia de respeito, confiança, honestidade e razoabilidade na participação processual. Não por acaso o princípio da boa-fé processual é referido pelo novo CPC como dever de todo e qualquer sujeito do processo (artigo 5º), como norte para a interpretação do pedido formulado (artigo 322, § 2º) e das decisões judiciais (artigo 489, § 3º).

[xiv] A audiência de saneamento e organização do processo em cooperação com as partes não deve, no entanto, depender e ficar restrita às hipóteses em que a matéria fática ou de direito for complexa. Pode ser realizada independentemente de a causa ser qualificada como tal. Nesse sentido, o enunciado 298, do FPPC. Também consonantes os enunciados administrativos 28 e 29, da Segunda Vice-Presidência, do TJMG).

[xv] Sobre a quantidade de testemunhas, não há necessidade de delongas, haja vista que permanece sendo dez o número máximo de testemunhas arroladas, no total, e três, o máximo, para a prova de cada fato (art. 357, § 6º). O texto sofreu alteração apenas redacional do revogado parágrafo único, do art. 407, que dispunha que “É lícito a cada parte oferecer, no máximo, dez testemunhas; quando qualquer das partes oferecer mais de três testemunhas para a prova de cada fato, o juiz poderá dispensar as restantes”. Esse número poderá ser limitado (ampliado ou reduzido) pelo juiz, “levando em conta a complexidade da causa e dos fatos individualmente considerados” (art. 357, § 7º).

[xvi] Marca a distinção entre os dois tipos de calendário a possibilidade de aquele ser imposto pelo juiz, ao passo que este é sempre negocial entre os sujeitos do processo.

[xvii] Para aprofundamento do tema, é indispensável a leitura de RODRIGUES, Marco Antonio dos Santos. A modificação do pedido e da causa de pedir no processo civil. Rio de Janeiro: Gz, 2014. Na obra, o autor define, como principais parâmetros a serem observados para que admitida a modificação objetiva da demanda, após o saneamento do processo, (i) a autonomia da vontade, (ii) o contraditório, (iii) a boa-fé e (iv) a manutenção da unidade da instrução probatória, para que não seja necessária a repetição de todos os atos probatórios, ao arrepio da celeridade e da eficiência.
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