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Negócio Processual sobre as presunções: breves notas

Por: Lara Dourado Mapurunga Pereira
Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduada em Direito (Magna Cum Laude) pela Universidade Federal do Ceará. Membro do Grupo de Estudos em Direito Processual Civil (GEDPC-UFC). Advogada. 


A possibilidade de negociação processual – criação, modificação ou extinção de situações jurídicas processuais ou flexibilização de aspectos do procedimento de acordo com a vontade das partes[1] - está presente no processo civil brasileiro desde o CPC/39, mesmo que muitos autores, por diversos motivos, negassem tal afirmação[2]. Com o advento do CPC/15 e sua cláusula geral de convencionalidade (art. 190), não restam dúvidas de que a negociação processual é expressamente permitida no ordenamento processual brasileiro.

Para que fosse atingida essa realidade, houve um desenvolvimento do modelo processual adotado. Em um momento anterior, quando presente uma sistemática excessivamente publicista, em que a lei constituía a única fonte normativa e o Estado-juiz dominava por completo o procedimento[3], era sobremaneira limitada a capacidade de autorregramento das partes. Nesse contexto, estas só poderiam manifestar vontade quanto às postulações; por exemplo, propor ou não a ação ou recorrer de uma decisão.

Já no contexto privatista, no qual o juiz restava inerte - um ‘’convidado de pedra’’, conforme Taruffo[4] , sob pena de comprometimento de sua imparcialidade, a iniciativa e a condução do processo eram de responsabilidade das partes. Tal sistemática parece apresentar campo fértil para a negociação processual, contudo, não demonstra, ao menos em princípio, recepcionar o devido processo legal formal, que consiste na observação de um procedimento pré-definido, que fornece segurança jurídica aos litigantes.

Em um modelo cooperativo de processo, realidade que o CPC atual busca implantar, há equiparação da importância das partes e do juiz, que eram desequilibradas nos modelos publicista e privatista, para formar uma comunidade de trabalho[5]. Trata-se de terreno fértil para a presença de negócios processuais, que trazem a autonomia privada[6] ao exercício de situações processuais, com certas limitações. Isso ocorre, pois, o processo corresponde à materialização da função estatal de jurisdição, campo em que há menos liberdades do que no direito privado em geral.

A cláusula geral, mencionada anteriormente, possibilita a existência de convenções típicas e atípicas. É com esta categoria que trabalharemos a partir de agora.

O negócio para a criação de presunções, inserido no gênero dos negócios sobre a prova, não está previsto em nenhum dos artigos do CPC, sendo necessário que seus contornos sejam delineados inteiramente pelas partes, o que torna sua autonomia ainda mais ampla.

A presunção não é prova, mas uma construção da racionalidade humana baseada em evidências. Presumir é aceitar algo, ainda que provisoriamente, na ausência de informações relevantes que são tidas como necessárias para estabelecê-la[7]. Na mesma toada, Barbosa Moreira aponta que ‘’a relação entre os dois fatos – o conhecido e o desconhecido – é tal, suponhamos, que da existência do primeiro se possa logicamente inferir, senão com absoluta certeza, ao menos com forte dose de probabilidade, a existência (ou a inexistência) do segundo’’[8]. Percebe-se, portanto, que a presunção é fruto de um raciocínio indutivo.

Quanto à fonte de produção, as presunções podem ser judiciais (o juiz, ao apreciar os fatos, utiliza-se de máximas de experiência para fazer inferências com relação àqueles) ou legais. Propomos uma categoria de presunção convencional, originada da criatividade das partes, permitida pelo princípio do autorregramento da vontade no processo[9].

No que tange à força probante, a presunção pode ser relativa ou absoluta. No campo relativo, a presunção somente resistirá enquanto não surgir fato que a contrarie – a prova em contrário. Corresponde à maioria das presunções previstas no ordenamento jurídico, como a pressuposição de inocência e a presunção de veracidade dos documentos públicos.

Por sua vez, na presunção absoluta a ‘’probabilidade de que o facto seja verdadeiro é de tal modo elevada, que o legislador reputa conveniente a não admissão de prova contrária. E isto seja para simplificar o juízo, seja para impedir que através do recurso a prova contrária inverídica o falso prevaleça sobre o verdadeiro’’[10]. Assim, o julgador fica adstrito à presunção, não sendo admitida a prova em contrário. Eduardo Cambi sinaliza que o único modo de promover seu afastamento é conseguir convencer o julgador de que não se configuram os pressupostos fáticos determinados em lei para a sua aplicação[11].

Como exemplo desse tipo de presunção, podemos citar o Registro Torrens - que dá ao proprietário presunção absoluta de domínio da propriedade rural - e as hipóteses de impedimento do juiz e dos auxiliares da justiça, ambas de origem legal.

Pela extensão deste ensaio, resolvemos tratar de três inquietações iniciais sobre o tema, já ressaltando serem muitas as questões a se enfrentar no que tange à temática estudada.

O primeiro ponto a ser tratado é a utilidade de uma presunção negociada. Por que e para que as partes se utilizariam dessa convenção? A presunção criada pelas partes possui as mesmas funções de uma presunção legal: facilitar a prova e diminuir a incidência de eventual arbítrio do magistrado quando da apreciação de questões factuais[12]. Além disso, a presunção negociada pode ser criada para ‘’acautelar situações em que as decisões têm de ser tomadas num contexto de insuficiente informação’’[13].

Ainda, as presunções podem ser necessárias para acautelar valores caros à sociedade, como a presunção de inocência (protege o valor constitucional da impossibilidade de considerar alguém culpado antes da sentença condenatória transitar em julgado) e presunções do art. 1.597 do Código Civil, que visam a período de tempo, sob pena de presunção (relativa) de que as informações alegadas pela parte contrária, relativas a estes, sejam consideradas verdadeiras[14].

Na prática, a título de exemplo, é possível vislumbrar uma situação em que seja obrigada certa parte a guardar documentos por determinado período de tempo, sob pena de presunção (relativa) de que as informações alegadas pela parte contrária, relativas a estes, sejam consideradas verdadeiras.[15]

A seguir, há o questionamento sobre a possibilidade de derrogação de presunção absoluta pelas partes.

Conforme explicado anteriormente, a utilização de presunção absoluta torna desnecessária[16] a produção de prova em contrário, pela necessidade de o juiz restar adstrito ao conteúdo da presunção.

Leonardo Greco promove crítica veemente a esse tipo de presunção, pois ela corresponderia a verdadeira ficção, violando as garantias epistemológicas da busca racional da verdade[17].

Parece-nos que não é possível derrogar presunção absoluta por força de convenção processual. Se o ordenamento jurídico não permite que essa presunção seja afastada pela atividade probatória das partes, autorizada em larga escala pelo princípio da ampla defesa, também não seria possível que uma convenção a derrogue. Trata-se de uma questão lógica: quem não pode o menos (efetivamente provar, por todos os meios admitidos legalmente, que o fato ocorreu/não ocorreu), não pode o mais (banir a própria presunção).

Além disso, as presunções absolutas, geralmente, tratam de questões de ordem pública, importantes para configurar um processo devido, por exemplo, as hipóteses de impedimento dos juízes e auxiliares de justiça. Afastar essa presunção seria contraproducente, pois alguma das partes (ou até as duas) sempre ficaria receosa de o julgamento se tornar tendencioso.

Ainda, poder-se-ia indagar sobre a necessidade do processo de atingir a verdade real, o que não seria possível pela implantação de presunções pelas partes, por se tratar de situações nas quais não há certeza da ocorrência ou não de certo fato.

A verdade, embora no âmbito filosófico encontre-se no centro do processo de cognição, enquanto resultado ideal da interação entre sujeito, atividade e objeto cognoscível, no âmbito do direito processual, não pode constituir o escopo principal. Para o processualista moderno, a verdade constitui importante aspecto no pronunciamento jurisdicional que aplicará a vontade concreta do direito. Contudo, ela não constituirá um fim em si mesma[18]. Caso contrário fosse, a técnica processual restaria fadada ao não esgotamento do procedimento e à não efetividade da prestação jurisdicional[19].

Não é possível atingir a verdade absoluta em nenhum campo da ciência. Não se pode esperar que isso seja possível também no processo, ambiente sujeito a fatores como necessidade de uma duração razoável, rigidez procedimental, uso de presunções e restrições no campo probatório (incluindo as negociais), os quais dificultam a descoberta de uma verdade substancial[20].

A verdade válida no processo é aquela obtida por meio da análise, pelo juiz, das provas produzidas em consonância com o ordenamento vigente, que pode conter como fonte normativa os negócios processuais, inclusive no que tange à criação de presunções.

Para além dessas questões – apenas muito superficialmente analisadas neste ensaio -, assomam-se diversas outras indagações. Suscitam questionamentos relevantes, por exemplo: 1) A convenção sobre presunção é um negócio de direito processual ou de direito material? Por que essa diferenciação é importante?; 2) O que diferencia os negócios processuais sobre as provas dos negócios processuais em geral? O que autoriza a existência desse tipo de convenção?; 3) Presunção absoluta é de fato uma presunção?; 4) A convenção sobre presunção impediria a prova de oficio pelo juiz?; e 5) É possível convenção para derrogar presunção relativa existente? É possível criação de presunção absoluta pelas partes?

Com a exposição dessas questões – algumas já com considerações iniciais, outras, por enquanto, apenas provocações -, espera-se que esses primeiros pensamentos possam ser recebidos pela comunidade jurídica com entusiasmo e que gerem ainda mais inquietações.

[1] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 68.

[2] Para Enrico Tullio Liebman, ‘’o resultado dos atos processuais é inerente à existência do ato mesmo, sendo irrelevante o intuito do agente’’. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Tradução e notas de Cândido R. Dinamarco. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 227. Conforme Daniel Mitidiero, todos os atos dos sujeitos do processo já estão ‘’normados (ou normatizados)’’ em lei, impossível seria o negócio jurídico dentro do processo. MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2005, t. II, p. 15. Na mesma linha, Cândido Dinamarco entende que seria possível escolher certos comandos jurídicos, mas não haveria liberdade para regrar os efeitos da escolha. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, v. 2, p. 472. Tanto para José de Albuquerque Rocha quanto para Alexandre Freitas Câmara há impossibilidade de os efeitos dos atos dos sujeitos processuais se darem diferentemente do que é previsto na lei. ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Atlas, 2003, 242. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 24. ed. São Paulo, Atlas, 2013, vol. 1, p. 274.

[3] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 180.

[4] TARUFFO, Michele. Il processo civile ‘’adversary’’ nell’esperienza americana. Cedam: Padova, 1979, p. 130-131.

[5] BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 179.

[6] Aqui entendida na concepção de Emilio Betti como o “poder do indivíduo de autorregulamentação dos próprios interesses e relações [...] pressuposto e causa geradora de relações jurídicas já disciplinadas, em abstrato e em geral, pelas normas dessa ordem jurídica’’. BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Campinas: Servanda Editora, 2008, p. 80-81.

[7] RESCHER, Nicholas. Presumption and the practices of tentative cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 1.

[8] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual: primeira série. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 57

[9] Sobre este princípio: DIDIER JR., Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no Processo Civil. In: BRANCO, Janaina Soares Noleto Castelo et al (org.). Novo Código de Processo Civil: Perspectivas e desafios - Estudos em Homenagem ao Professor Daniel Gomes de Miranda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 133-140.

[10] SOUSA, Luís Felipe Pires de. Prova por presunção no Direito Civil. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2013, p. 95.

[11] CAMBI, Eduardo. A prova civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 367.

[12] CAMBI, Eduardo. A prova civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 366.

[13] SOUSA, Luís Felipe Pires de. Prova por presunção no Direito Civil. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2013, p. 20-21.

[14] Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

[15] Trata-se de ideia esposada recentemente em parecer inédito de Fredie Didier Jr.

[16] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual: primeira série. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 55.

[17] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil: processo de conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, vol. 2, p. 263.

[18] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 7. Ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 272.

[19] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 7. Ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 272.

[20] GODINHO, Robson Renault. Negócios processuais sobre o ônus da prova no novo código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 151.
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