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Noiva traída, dívida vencida

Por: Lorena Miranda Santos Barreiros
Doutora e mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (ANNEP). Procuradora do Estado da Bahia. Professora da Faculdade Baiana de Direito.


“Álvaro Cruz, você está certo do que irá fazer? Espero que não esteja se precipitando, meu filho!”

As palavras de Maria Helena, sua mãe, ressoavam firmemente na cabeça de Álvaro na manhã daquela segunda-feira, 28 de novembro de 2016. Ainda tomava o seu café quando a campainha de sua casa tocou. Além da porta da entrada, fitava-o o rosto entediado de um oficial de justiça, que, após sussurrar um “bom dia”, procedeu à leitura do mandado de citação que trazia consigo, entregando a Álvaro a contrafé e colhendo dele o recibo na via do documento que permaneceu em poder do oficial. Mecanicamente, Álvaro a tudo assentiu, muito embora quase nada houvesse realmente ouvido, de fato.

Não havia necessidade. Desde o momento em que autorizara a subida do oficial de justiça cuja presença na portaria fora anunciada no interfone do seu apartamento, Álvaro já estava convicto do que lhe reservava aquela visita. “Tereza”, pensou. E estava certo.

Embora sequer houvesse a necessidade daquele contato com o oficial de justiça, já que o mandado de citação poderia ter sido validamente entregue ao funcionário da portaria do seu condomínio edilício responsável pelo recebimento da correspondência, Álvaro desejava receber o mandado diretamente. Talvez fosse um modo de encarar o problema de uma vez.

Portava agora em suas mãos um mandado de citação, penhora e avaliação referente a um procedimento executivo fundado em título extrajudicial contra ele proposto por Tereza Lacerda. Sem emoção, Álvaro percorreu com os olhos todo o conteúdo daquele documento, detendo-se no campo indicativo do valor devido:

- Duzentos e vinte e um mil reais?

Álvaro empalideceu. A indiferença inicial converteu-se em um misto de incredulidade, surpresa, raiva e medo. Onde encontraria, afinal, uma soma tão vultosa de dinheiro para pagar aquela dívida que lhe era imputada?

Tereza Lacerda não era uma credora qualquer. Era sua ex-noiva, com quem poderia ter se casado há apenas dois dias, se o tórrido romance por ambos vivido ao longo de um ano e meio não tivesse se acabado de modo constrangedor há pouco mais de um mês. “Ironia do destino” – pensou Álvaro. “Estivesse eu casado com Tereza, não estaria sendo executado judicialmente. Aliás, sequer poderia ser citado em processo cível algum nos três dias seguintes ao meu casamento, salvo para evitar perecimento do direito!”.

Seu pensamento o fez rir. Bacharel em Direito por formação, Álvaro abdicara de sua natural vocação para dedicar-se aos negócios da família. Com o falecimento de Armando, seu pai, ocorrido logo após a sua formatura, assumiu a administração da fábrica de velas que aquele possuía desde antes de se casar com Maria Helena e que ambos – Maria Helena e Álvaro – herdaram. Além desse bem, Álvaro apenas possuía seu imóvel residencial, que com muito esforço e trabalho conquistara há cerca de dois anos e no qual morava com sua mãe.

Sempre que podia, Álvaro permitia-se contato com a área jurídica. Estudar o Direito tornara-se um de seus passatempos prediletos. Conhecera Tereza em maio/2015, durante uma viagem ao Rio de Janeiro, para participar de um congresso jurídico realizado naquela cidade. Ao término do evento, Álvaro e Tereza já estavam namorando e nem a distância que os separava (ela morava no Rio de Janeiro e ele, em Belo Horizonte) impediu que dessem prosseguimento ao romance.

Aos seis meses de namoro, decidiram ficar noivos e marcaram a data do casamento para dali a um ano, precisamente para o dia 26 de novembro de 2016. No início de dezembro de 2015, passando por graves dificuldades financeiras, Álvaro foi convencido por Tereza a aceitar dela um empréstimo no valor de cento e setenta mil reais, montante suficiente ao pagamento de suas dívidas.

Embora noivos estivessem, a prudência recomendava – e assim foi feito – que assinassem um contrato de mútuo, estabelecendo-se como prazo de pagamento o dia 20 de outubro de 2016. Orgulhoso, Álvaro não pretendia iniciar a vida conjugal na condição de devedor de sua futura esposa. Mas não poderia recusar a ajuda que lhe garantiria a reestruturação de suas finanças.

O relacionamento, no entanto, não durou até a data de vencimento da dívida. No caminho estaria o fatídico sábado, 15 de outubro de 2016, quando Álvaro, ao decidir presentear-se com uma despedida de solteiro, fora flagrado por Tereza, que, sentindo-se traída, pôs fim sumariamente ao romance, sem respeito ao princípio do contraditório.

A passagem dos minutos daquela manhã interminável de segunda-feira, 28 de novembro de 2016, conduzia Álvaro a uma situação de progressiva consciência da situação em que se envolvera. Mal rompera-se o vínculo entre o casal, Tereza apenas aguardou o vencimento da dívida para cobrá-la. A execução fora proposta no dia 21 de outubro de 2016, sexta-feira. “Ainda sob o efeito da raiva”, pensou Álvaro.

Novamente a advertência de sua mãe lhe veio à cabeça. Fora precipitado aceitar o empréstimo de alguém que conhecera há pouco mais de seis meses. Fora precipitado pensar em casamento. Mas, agora, só lhe restaria enfrentar o processo de execução.

Não havia dúvidas de que o contrato de mútuo celebrado com Tereza era um título executivo extrajudicial. Tratava-se de documento particular assinado por ele, devedor, e por duas testemunhas – por sinal, seus quase padrinhos de casamento – e consignava obrigação certa, líquida e exigível. Ao se lembrar de que todos os seus bens presentes e futuros responderiam pelo cumprimento da obrigação, Álvaro estremeceu. “Pelo menos, meu apartamento está resguardado, bendita regra de impenhorabilidade do bem de família!”. No momento, dentre os bens seus não sujeitos à penhora, aquele era o que mais importava.

O montante de duzentos e vinte e um mil reais abrangia, além do valor devido atualizado e acrescido de juros, os honorários advocatícios de dez por cento fixados de plano pelo juiz ao despachar a petição inicial da execução. O mandado noticiava a Álvaro – como se notícia boa fosse, verdadeira sanção premial – que o pagamento integral da dívida, no prazo de 03 (três) dias, conduziria à redução do valor dos honorários pela metade. “Ora, como se fosse fácil obter duzentos e vinte e um mil reais em três dias!”

O impulso jurídico de vasculhar uma saída para o problema o conduziu a examinar a petição inicial da execução. Bem elaborada, fora devidamente instruída com o título executivo extrajudicial e o demonstrativo do débito atualizado até a data da propositura da demanda e indicava, em seu teor, tratar-se de execução por quantia certa contra devedor solvente (será?), fazendo menção aos nomes completos da exequente e do executado e seus números de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas. O demonstrativo do débito era detalhado e indicava o índice de correção monetária adotado, a taxa de juros aplicada e os termos inicial e final de incidência da correção e dos juros.

Ao final, uma singela indicação de bem suscetível de penhora...

- NÃO!

Álvaro não conseguiu conter o desespero. A exequente – por instantes esquecera-se de que um dia fora ela sua noiva – indicara à penhora as quotas que Álvaro possuía na fábrica de velas que herdara de seu pai! Sentiu uma dor verdadeiramente física, como se um golpe houvesse sido desferido em seu rosto. E, à revelação, veio a raiva.

A petição inicial era subscrita por Gastão Antunes, um antigo namorado de Tereza que Álvaro tivera o desprazer de conhecer. Embora Tereza jamais houvesse manifestado interesse remanescente pelo ­ex–affair, era nítido que ele não a havia esquecido. O processo seria ainda mais difícil do que Álvaro imaginava.

Buscando restabelecer seu equilíbrio emocional, Álvaro centrou suas atenções nos três dias que possuiria para efetuar o pagamento do débito. “Impossível”, pensou. Nos últimos meses, havia contraído diversas outras dívidas em decorrência do casamento que se aproximava e sua intenção, em verdade, era adimplir a sua dívida dando à Tereza, em pagamento, parte de seu imóvel, bem do qual se tornariam coproprietários. Mas, agora, com o término da relação, essa solução afigurava-se impossível. E não havia como pagar a dívida.

Álvaro sabia que a penhora seria inevitável. Em três dias, não conseguiria reunir o valor devido e, fatalmente, o oficial de justiça retornaria, de posse daquela via do mandado de citação, penhora e avaliação na qual ele firmara seu recibo, procedendo-se à penhora de suas quotas sociais. Restaria a Álvaro, obviamente, a indicação de outros bens passíveis de penhora, com a comprovação de que a sua opção ser-lhe-ia menos onerosa e não traria prejuízo a Tereza. Mas a verdade é que não possuía outros bens que pudesse indicar à penhora, especialmente em razão do valor executado.

Nos três dias que se seguiram, Álvaro mal se comunicou com sua mãe, Maria Helena, em casa. Não tinha coragem de lhe contar o que estaria prestes a ocorrer. A fábrica de velas de seu pai sairia das mãos da família Cruz, onde permanecia desde sua criação. Passo a passo, Álvaro tentou buscar uma das saídas que o ordenamento jurídico estabelecia, justamente com a preocupação de preservação da sociedade, constituída que fora intuitu personae.

Álvaro sabia que, uma vez penhoradas as suas quotas sociais, o juiz assinaria à sociedade prazo de até três meses para que fosse apresentado balanço especial, intervalo no qual essas quotas seriam oferecidas aos demais sócios (no caso, sua mãe, que ele sabia não teria dinheiro para adquiri-las) ou poderiam ser adquiridas pela própria sociedade, para manutenção em sua tesouraria, desde que não fosse reduzido seu capital social e fossem utilizadas reservas da sociedade. Esta opção também estaria descartada.

Nem mesmo a liquidação de quotas sociais seria possível, uma vez que o pagamento delas pela sociedade ser-lhe-ia excessivamente oneroso. Restaria, apenas, o leilão judicial das quotas. A fábrica de velas Cruz deixaria de ser apenas dos Cruz.

*

O silêncio de Álvaro era eloquente para Maria Helena. Acontecera o que ela temia desde que se consumou o término do romance de seu filho com Tereza: ela cumprira a promessa de transformar a vida dele em um inferno e já atentara contra a sua parte mais sensível. Não, não se tratava do bolso. Cuidava-se do bem mais precioso que Álvaro possuía, o elo que o fazia sentir a presença firme de seu pai em sua vida.

Ao contrário de Álvaro, Maria Helena não possuía conhecimentos jurídicos. Mas, ao ver o comportamento estranho de seu filho, deduziu que algo inquietante acontecera e, no interior da gaveta da mesa de trabalho de Álvaro, obteve a resposta. A mensagem contida naquele documento dispensava tradução: pague ou perca seu bem mais precioso. “Como você perdeu o seu, Tereza”, pensou Maria Helena.

Maria Helena respeitou o silêncio de Álvaro e fingiu não perceber a sua súbita mudança de comportamento. Mas, precavida, fez contato com Claudio Silva, advogado amigo de infância de Álvaro e que fora seu colega de faculdade, pedindo-lhe que entrasse em contato com seu filho e buscasse ajudá-lo, no que foi prontamente atendida.

*

Os três dias mais longos da vida de Álvaro transcorreram sem que a dívida fosse paga. Conjuntamente com Claudio Silva – que, por coincidência, entrara em contato consigo justamente na noite daquela fatídica segunda-feira, 28 de novembro de 2016 –, Álvaro decidiu não opor embargos à execução. Simplesmente não encontrara matéria passível de alegação em sede de embargos. Nem queria brigar com Tereza, havia decidido.

Efetuada a penhora de suas quotas, arrastou-se o prazo de dois meses que o juiz estabeleceu para que a fábrica de velas apresentasse seu balanço especial. “Poderiam ter sido três meses”, pensou Álvaro, lembrando-se do prazo máximo disposto na legislação processual. Mas afastou a ideia de sua mente. Era estranho, mas, apesar de tudo, aquele processo era o que o mantinha ligado a Tereza. E a cada dia essa ideia se tornava mais persistente em sua cabeça.

O valor apurado das quotas, de cento e oitenta mil reais, não era suficiente para o integral pagamento da dívida. Diante dessa circunstância, ao ser avisado por Claudio Silva da existência de uma petição protocolizada por Tereza nos autos da execução, Álvaro logo deduziu tratar-se de um pedido de ampliação da penhora. Só não entendeu a insistência do amigo em que o encontrasse pessoalmente para conversarem.

- Tereza requereu a adjudicação das quotas para ela, Álvaro. – Claudio Silva foi direto ao ponto assim que sentaram ambos no bar situado quase em frente à casa de Álvaro – E o mais estranho: embora o Código de Processo Civil assegure à exequente a possibilidade de adjudicação por preço não inferior ao da avaliação e apesar de Tereza saber que Maria Helena não exerceria o direito de preferência dela, Tereza ofereceu pelo bem valor que corresponde ao da dívida atualizada e acrescida das custas e de honorários advocatícios de vinte por cento, o que parece ter sido feito em razão da possibilidade de majoração do percentual, mesmo sem que você tenha embargado à execução, levando-se em conta o trabalho realizado por Gastão Antunes, advogado dela.

- Não vou me opor – limitou-se a responder Álvaro.

- Está louco, amigo? – perguntou, incrédulo, Claudio Silva. Esta mulher permanecerá em sua vida para sempre desse jeito! Será sócia de sua mãe na fábrica que era de seu pai!

- Que assim seja, Claudio – Álvaro parecia irresolúvel – Nunca quis dever a Tereza. Teria dado minha casa a ela em pagamento, se tudo houvesse acontecido como havíamos pensado. Não o faço hoje porque minha mãe e eu não teríamos onde morar.

- Mas Álvaro...

- O maior valor que meu pai me ensinou foi a honestidade, Claudio. Meu erro foi ter aceitado aquela proposta de despedida de solteiro às vésperas do meu casamento. Disso é que mais me arrependo na vida: de ter perdido a Tereza.

De súbito, a conversa foi interrompida por uma familiar voz feminina...

- Era esse meu maior pagamento, Álvaro. Ouvir de você uma confissão sincera de arrependimento. Não há prova de amor maior do que esta que acabo de receber.

Álvaro levantou-se de um salto: ali estava, diante de si, Tereza, olhos marejados com a confissão que acabara de escutar. Em choque, Álvaro mal conseguia falar. Nem sequer percebeu a presença de Maria Helena, um pouco mais distanciada, que a tudo assistia, avisada que tinha sido por Claudio de que o filho receberia uma notícia difícil de suportar. Álvaro e Tereza reconciliaram-se ali mesmo. Nem Claudio nem Maria Helena falaram nada. Não era o momento para qualquer intervenção de terceiro.

*

Não houve adjudicação do bem penhorado; tampouco foi necessária a sua venda em leilão judicial. Álvaro pagou sua dívida do modo como sempre desejou: transferindo a Tereza parte de seu imóvel residencial. E ambos transferiram, um ao outro, parte de suas vidas. Casaram-se, como havia de ser.

Os honorários advocatícios de Gastão Antunes foram pagos pela própria Tereza. O pagamento que ele efetivamente desejava, jamais recebeu: o amor de Tereza sempre fora, desde que conhecera Álvaro, bem fora do comércio.

Maria Helena decidiu morar sozinha e aceitou vender a participação na sociedade para adquirir um imóvel próprio. A adquirente dessas quotas foi uma distinta senhora, de nome Tereza Lacerda Cruz. Desnecessário dizer que os instrumentos jurídicos conducentes à concretização desses negócios foram elaborados por Claudio Silva, agora advogado contratado da Fábrica, que está em plena expansão.

Como Tereza chegou no bar, justamente a tempo de ouvir a confissão de Álvaro? Este é um daqueles mistérios que só a vida faz acontecer.

E a Fábrica de Velas Cruz continua sendo dos Cruz.
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