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O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica e a Fraude à Execução no NCPC

Por: Marcela Melo Perez
Advogada (Bocater, Camargo, Costa e Silva, Rodrigues Advogados), graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


O NCPC estabeleceu, em seus artigos 133 ao 137, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, incidente este de cunho eminentemente cognitivo e que visa à certificação pelo órgão jurisdicional das hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica consagradas nas disposições de direito material, dentre as quais se destaca o art. 50 do Código Civil.[1] O legislador previu, inclusive, a aplicação do incidente para as hipóteses de desconsideração inversa da personalidade jurídica, a qual tem por escopo atingir o patrimônio da pessoa jurídica, em virtude de obrigações pessoais contraídas pelos seus sócios.

Trata-se, assim, de modalidade de intervenção de terceiro, eis que por meio deste incidente, de adoção obrigatória, [2] provoca-se o ingresso de terceiro em juízo, com o objetivo de sujeitá-lo à responsabilidade patrimonial.[3]

A regulamentação trazida pela nova lei processual veio em boa hora, uma vez que, na ausência de disposição sobre o procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica no CPC73, o juízo acerca da pertinência das razões que levariam a sua decretação era feito independentemente do prévio exercício de contraditório pela pessoa que se pretendia responsabilizar com o “levantamento do véu” da pessoa jurídica. A jurisprudência, portanto, sob a égide do CPC73, posicionava-se no sentido de que a “superação da pessoa jurídica” poderia ser deferida nos próprios autos, “dispensando-se a citação dos sócios” e “bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade”.[4]

Nessa linha, o NCPC, em atenção ao seu art. 9o, [5] criou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o qual permite conciliar a responsabilidade patrimonial de terceiros não obrigados com o respeito ao exercício do contraditório prévio[6] por parte dos interessados e observância do devido processo legal.[7]

Conforme estabelecido pelo NCPC, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, cabendo ao requerente demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a sua decretação. O incidente é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.[8] Instaurado o incidente, o processo principal será suspenso, determinando-se a citação do sócio ou da pessoa jurídica para manifestar-se e requerer a produção das provas cabíveis. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.[9]

Admite-se que a desconsideração da personalidade jurídica seja requerida na petição inicial, hipótese em que é dispensada a instauração do incidente e é determinada a citação do sócio ou da pessoa jurídica, em conjunto com os demais réus.[10] Nesse caso, não há intervenção de terceiro e o requerimento de desconsideração não impõe a suspensão do processo.[11]

Previu, outrossim, o NCPC, em seu artigo 137, que “acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”. A disposição do artigo 137, contudo, dever ser lida em consonância com o artigo 792, § 3o, segundo o qual “nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar”. Buscou, por conseguinte, esse dispositivo estabelecer o termo inicial a partir do qual eventual alienação ou oneração de bens ocorreria em fraude à execução.

Alguns autores vêm interpretando a disposição em comento no sentido de que o NCPC teria estabelecido que o marco inicial para a fraude à execução seria a citação do sócio (ou da pessoa jurídica, no caso de desconsideração inversa) para participar do incidente.[12] Em que pese a opinião de respeitável doutrina, parece-nos que o legislador estabeleceu que tal marco seria a citação “da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar” e “parte cuja personalidade se pretende desconsiderar” é a pessoa jurídica na desconsideração “usual” e o sócio na desconsideração inversa. Veja, embora tal previsão seja passível de críticas[13] e possa ser taxada de “enérgica”, [14] é a pessoa jurídica, na desconsideração “usual”, que terá a sua “personalidade desconsiderada” e não o contrário.[15]

Ao que tudo indica, o legislador partiu do pressuposto de que, tendo havido fraude e, em função disso, sido decretada a desconsideração da personalidade jurídica, a citação da parte que teve a personalidade jurídica desconsiderada equivaleria àquela do terceiro responsável.[16] Trata-se, logo, da extensão, em parte, dos efeitos da litispendência ao terceiro responsável, com o intuito de permitir que alienações e onerações de bens praticadas antes da citação deste terceiro sejam reputadas como ineficazes.

É que, se a fraude à execução pudesse ser verificada apenas a partir de atos praticados pelo terceiro após a sua citação, eventuais atos fraudulentos perpetrados anteriormente ao requerimento de desconsideração e que podem, até mesmo, ter motivado a formulação deste pedido, simplesmente não seriam tidos por ineficazes e não estariam sujeitos à execução.[17]

Nada obstante a aparente compreensível intenção do artigo 792, § 3o, do NCPC, uma interpretação literal do dispositivo poderia conduzir a situações de flagrante injustiça e insegurança no âmbito da celebração de negócios jurídicos. Explica-se.

O artigo 792 do NCPC trata dos casos em que a alienação ou a oneração de bem é considerada em fraude à execução, quais sejam: i) quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver; ii) quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução; iii) quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; iv) quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência; e v) nos demais casos expressos em lei.

Entende-se que, para a configuração da fraude à execução, em relação ao executado, não se deve perquirir acerca de seu animus, sendo desnecessário indagar se este pactuou a alienação ou oneração de bens com boa ou má-fé, bem como se tinha, ou não, o intuito de prejudicar o exequente, tornar-se insolvente ou alienar a coisa pretendida no processo.[18] Pressupõe-se que, ciente acerca de demanda capaz de reduzi-lo à insolvência, ou presente outra situação elencada nos demais incisos do art. 792, o executado atuou para fraudar a execução.

Por outro lado, no tocante ao terceiro, aquele que adquire ou se beneficia da oneração do bem, a jurisprudência posicionou-se, durante a vigência do CPC73, majoritariamente, no sentido de presumir a sua boa-fé, quando ausente registro de ação pendente ou constrição judicial perante o órgão competente, e exigir do exequente a comprovação de que aquele tinha ciência da existência de ação em curso. Esse posicionamento, embora tenha sido questionado no âmbito do próprio STJ, é o consubstanciado na súmula 375 deste Tribunal Superior.[19]

O NCPC, entretanto, mitigou a presunção de boa-fé do terceiro e passou a exigir que, no caso de aquisição de bem não sujeito a registro, terá ele o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem (art. 792, § 2o).

Nesse diapasão, tem-se que, atualmente, o NCPC exige que o terceiro adquirente demonstre a sua boa-fé, na aquisição de bem não sujeito a registro, por meio da obtenção e apresentação de certidões que comprovem, notadamente, a saúde financeira do alienante e o desconhecimento da existência de ação capaz de reduzir o executado à insolvência.[20]

Ocorre que tal exigência, conjugada com a interpretação literal do art. 792, § 3o, acabaria por exigir dos adquirentes de bens uma pesquisa deveras abrangente acerca não apenas da situação alienante, como também da pessoa jurídica que ele integra (se o alienante for pessoa física) e dos sócios que compõem a pessoa jurídica (se o alienante for pessoa jurídica). Essa pesquisa, a qual, em princípio, poderia ser avaliada como um mero ato de diligência e cuidado do adquirente, terminaria por encarecer e burocratizar os procedimentos de alienação de bens, dificultando-os excessivamente ou, simplesmente, inviabilizando-os.[21]

É possível, ainda, vislumbrar situações em que certos atos de alienação ou oneração de bens, ocorridos após a citação da pessoa cuja personalidade se pretende desconsiderar, tenham sido praticados anteriormente a qualquer exercício abusivo ou fraudulento da personalidade jurídica. Tais atos, aparentemente regulares e lícitos, poderiam ser alcançados pela fraude à execução? É razoável permitir que, mesmo tendo sido praticados após o exercício abusivo ou fraudulento da personalidade jurídica, a alienação a terceiro seja reputada ineficaz, na situação em que entre a citação da pessoa jurídica e do terceiro sócio decorreram muitos anos?

Diante desse cenário e a partir dessas indagações, consideramos que o art. 792, § 3o, deve ser interpretado de forma que se permita a apuração da fraude à execução a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar, sem que esse termo seja adotado como marco obrigatório. Em outras palavras, o legislador teria permitido a extensão, em parte, dos efeitos da litispendência ao terceiro responsável, para que, sendo a litispendência um dos pressupostos necessários à fraude à execução, esta possa ser constatada ainda em relação ao período de tempo no qual o sócio (ou a pessoa jurídica, na desconsideração inversa) não participava da relação processual. No entanto, nem sempre a fraude à execução “verifica-se” a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar, de modo que não são todas as alienações e onerações de bens praticadas após a citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar que serão tidas por ineficazes.

Seguindo esse raciocínio, para a obtenção de provimento jurisdicional tendente a declarar ineficaz alienação ou oneração de bem, deverá ter-se como marco a data de ocorrência ou a data de início do ato fraudulento[22] que ensejou a desconsideração.[23] Essa interpretação é a que nos parece mais harmônica com os motivos que embasam as regras de direito material sobre a desconsideração da personalidade jurídica, quando determinada em função de fraude ou abuso de personalidade, permitindo conciliar a exigida efetividade da execução com a segurança que se espera na celebração de negócios jurídicos.

Além disso, nesses casos (e em outros, nos quais a desconsideração não tem por base fraude ou abuso), será indispensável a demonstração pelo requerente de que o terceiro agiu de má-fé na alienação ou oneração, [24] não devendo a exigência contida no art. 792, § 2o, do NCPC, ser aplicada para o fim de se exigir dos adquirentes de bens a exibição das certidões pertinentes à pessoa jurídica que o alienante integra (se este for pessoa física) e aos sócios que compõem a pessoa jurídica (se o alienante for pessoa jurídica).

[1] Art. 500, CCC. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

[2] Art. 7955.§ 4oo, NCPCC. Para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código.

[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil, vol. 1, 17aEdição. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 514.

[4] “(...) A questão relativa à prévia citação do sócio ou da pessoa jurídica atingida pela aplicação da disregard doctrine, anteriormente à vigência donovo Código de Processo Civill, encontra precedentes no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que: "A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos, dispensando-se também a citação dos sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade" (REsp 1.414.997/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe de 26/10/2015). (...)” (REsp 1545817/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 19/04/2016, DJe 27/05/2016)

[5] Art. 9oo, NCPCC. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I - à tutela provisória de urgência; II - às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III - a decisão prevista no art. 701.

[6] Admite-se que o contraditório seja diferido, na eventualidade de estarem presentes os requisitos para a concessão de tutela de urgência. Assim, o respeito ao contraditório prévio deve ser regra, a qual pode ser objeto de exceção, desde que haja fundado receio de que este possa frustrar os objetivos que levaram a parte a formular o requerimento de desconsideração. Dessa forma, não persiste o entendimento da jurisprudência de que, como regra, o contraditório “a posteriori” seria suficiente.

[7] Como observamos em: PEREZ, Marcela Melo; SILVA, Bruno Freire e. Os impactos do novo CPC nos atos processuais iniciais e expropriatórios da execução fiscal. In: COSTA, Eduardo Fonseca da; SICA; Heitor Vitor Mendonça (Coord.). Legislação processual extravagante (Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 9. Coordenador Geral: Fredie Didier Jr.). Salvador: JusPodivm, 2016, p. 21.

[8] Esclareça-se que “O incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais” (Art. 1.062, NCPC).

[9] Anote-se que, como previsto no art. 1366, parágrafo unicoo, doNCPCC: “Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno”.

[10] Sobre o assunto, confira-se os seguintes enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). Enunciado FPPC 125. (art. 134): Há litisconsórcio passivo facultativo quando requerida a desconsideração da personalidade jurídica, juntamente com outro pedido formulado na petição inicial ou incidentemente no processo em curso (Grupo: Litisconsórcio e Intervenção de Terceiros). Enunciado FPPC 248. (art. 134, § 2º; art. 336) Quando a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, incumbe ao sócio ou a pessoa jurídica, na contestação, impugnar não somente a própria desconsideração, mas também os demais pontos da causa (Grupo: Petição inicial, resposta do réu e saneamento).

[11] Aponte-se que, conforme Enunciado FPPC 390 (arts. 136, caput, 1.015, IV, 1.009, § 3º): Resolvida a desconsideração da personalidade jurídica na sentença, caberá apelação (Grupo: Litisconsórcio e intervenção de terceiros).

[12] A esse respeito, veja-se a posição de Alexandre Câmara: “É que, desconsiderada a personalidade jurídica, ter-se-ão por ineficazes os atos de alienação ou oneração de bens praticados pelo sócio (ou pela sociedade, nos casos de desconsideração inversa), após sua citação para participar do incidente. É o que estabelece o art. 137, o qual dever ser interpretado de forma harmônica com o art. 792, § 3º (...). Assim, o momento a partir do qual se considerará em fraude de execução a alienação ou oneração de bens pelo sócio (ou pela sociedade, no caso de desconsideração inversa) não é propriamente o momento da instauração do incidente (que é, como visto anteriormente, o momento em que proferida a decisão que o admite), mas o momento da citação do responsável. A partir daí, qualquer ato de alienação ou oneração de seus bens será tida como frauda à execução se estiverem presentes os requisitos estabelecidos pelo art. 792 do CPC” (CÂMARA, Alexandre Freiras. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim [et al.]. Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 436). Igualmente, Eduardo Talamini, para quem: “Com o julgamento de procedência da desconsideração, podem ser considerados em fraude à execução (a depender da presença dos demais pressupostos) todos os atos de alienação ou oneração de bens praticados pelo sócio ou sociedade desde sua citação no incidente (arts. 137 e 792, § 3.º, do CPC/2015)” (TALAMINI, Eduardo. Incidente de desconsideração de personalidade jurídica. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI234997,11049-Incidente+de+desconsideracao+de+personalidade+juridica Acesso em 17 out. 2016).

[13] Confira-se a opinião de Flávio Luiz Yarshell: “Nesse particular, a lei poderia ter sido mais direta ao estabelecer que, para o responsável nos casos de desconsideração (art. 790, VII), a fraude verificar-se-ia a partir da respectiva citação – providência, aliás, que a lei exigiu de forma expressa (art. 135). Isso seria coerente com o que tradicionalmente se reconhece: a fraude pressupõe a litispendência e essa é efeito da citação. De outra parte, ficaria claro que não se pode confundir a pessoa cuja personalidade se quer desconsiderar, de um lado, com o terceiro responsável que se quer atingir mediante a desconsideração, de outro lado. A citação daquela primeira pessoa não pode ser considerada parâmetro para atos fraudulentos que a outra teria cometido. Mas a regra positivada foi a seguinte: o art. 792, § 3o, previu expressamente que, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude tem como termo inicial a “citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar”, e não a citação do terceiro responsável pela desconsideração” (YARSHELL, Flávio Luiz. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 248).

[14] “O art. 137, neste contexto, aponta uma das consequências do acolhimento do pedido, a de reconhecer a ineficácia da alienação ou da oneração de bens em relação àquele que formulou o pedido. Trata-se, pois, de um caso de fraude à execução (art. 792, V). Coerentemente – e de maneira enérgica, não nego –, a fraude verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade foi desconsiderada (art. 792, § 3º)” (BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil, 2a Edição. São Paulo: Saraiva, 2016, P. 178).

[15] Da mesma forma, na desconsideração inversa, é o sócio que terá a sua “personalidade desconsiderada”, sua personalidade afastada, com o escopo de tornar responsável a pessoa jurídica que ele integra.

[16] Segundo Flávio Luiz Yarshell, essa seria, “salvo melhor juízo, a única forma de explicar a opção legislativa, que trata as duas pessoas como se fossem uma só; ou, por outro modo de ver, que considera uma citada na pessoa da outra” (YARSHELL, Flávio Luiz. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 248/249).

[17] Veja-se, por exemplo, caso julgado pelo Judiciário fluminense, no qual foi permitida que oneração praticada anteriormente à desconsideração fosse considerada fraudulenta: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESVAZIAMENTO DE PATRIMÔNIO. DOAÇÕES EFETIVADAS ANTES DE DEFERIDA A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, PORÉM APÓS O PEDIDO FORMULADO. FRAUDE À EXECUÇÃO CONFIGURADA. (...) 5. No entanto, a hipótese guarda certa peculiaridade a evidenciar a ocorrência de ato fraudulento, deixando claro que as doações foram efetivadas pelo administrador com a nítida intenção de impedir futura constrição judicial e esvaziar seu patrimônio, em caso de se efetivar a desconsideração da personalidade jurídica, comprometendo a efetividade do processo. 6. Precária situação financeira da Santa Casa de Misericórdia que é notória, razão pela qual tal fato não podia ser desconhecido pelo seu administrador, o que por si, constitui indício suficiente de que este possuía plena ciência de que a demanda poderia lhe alcançar, sendo capaz de reduzi-lo à insolvência. (...) 9. Nesse passo, deve-se reconhecer que a citação da pessoa jurídica foi ato processual suficiente para demonstrar a ciência da demanda por seu próprio administrador. 10. Com efeito, a responsabilidade do administrador não se inicia somente após a decisão que declara a desconsideração da personalidade jurídica da instituição administrada, mas a partir da prática de atos ilícitos em prejuízo de terceiros. (...) 13. Desse modo, deve ser mantida a decisão que reconhecendo a fraude à execução, declarou a ineficácia das doações dos imóveis realizadas pelo ex-administrador” (TJRJ, Processo no0011159-76.2016.8.19.0000, 8aCâmara Cível, Des. Monica Costa Di Piero, Julgamento: 05/07/2016). Em sentido similar: TJRJ, Processo no 0010412-97.2014.8.19.0000, 10aCâmara Cível, Des. Celso Peres, Julgamento: 31/03/2014; e TJSP, Processo nº 0081407-58.2005.8.26.0000, 9ª Câmara de Direito Privado, Relator (a): João Carlos Garcia, Data de registro: 09/05/2006. Por outro lado, contra a possibilidade de configuração de fraude à execução relativa a atos praticados por sócios antes da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, e, portanto, sem que tais sócios participassem da relação processual: TJRJ, Processo no 0001387-60.2012.8.19.0055, 8a Câmara Cível, Des. Monica Costa Di Piero, Julgamento: 12/07/2016; TJRJ, Processo no 0066608-60.2009.8.19.0001, 14aCâmara Cível, Des. Jose Carlos Paes, Julgamento: 09/05/2011; e TJRJ, Processo no0050721-63.2014.8.19.0000, 6aCâmara Cível, Des. Benedicto Abicair, Julgamento: 26/01/2015.

[18] BASTOS, Antonio Adonias Aguiar In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.143.

[19] A súmula3755, publicada em 30.03.2009, afirma o seguinte: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Posteriormente a sua edição, tentou-se mudar esse entendimento, notadamente em função de posição defendida pela Ministra Nancy Andrighi, a qual, baseada nas dificuldades existentes para a demonstração da má-fé do terceiro adquirente, considerava mais adequado para a caracterização da fraude à execução a presença de certos requisitos, dos quais destacamos: i) “a averbação da penhora na matrícula do imóvel gera presunção absoluta de que a alienação do bem se deu em fraude de execução”; ii) “há presunção relativa da má-fé do terceiro adquirente na aquisição de imóvel em fraude de execução, de sorte que recai sobre ele o ônus de provar que não tinha conhecimento da existência de ação capaz de reduzir o devedor à insolvência ou de constrição sobre o bem adquirido”; iii) “há presunção relativa da má-fé do devedor-executado na alienação de imóvel em fraude de execução, de sorte que recai sobre ele o ônus de provar que não tinha conhecimento da existência de ação capaz de reduzi-lo à insolvência ou de constrição sobre o bem alienado”; (vi) “a prova de desconhecimento quanto à existência de ação capaz de reduzir o devedor à insolvência ou de constrição sobre o imóvel se faz mediante apresentação de pesquisas realizadas nos distribuidores, por ocasião da celebração da compra e venda, abrangendo as comarcas de localização do bem e de residência do alienante nos últimos 05 anos”. Todavia, no julgamento do Recurso Especial repetitivo no956.943, manteve-se o entendimento externado na súmula 375, ficando vencida a Ministra Nancy Andrighi (REsp 956.943/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. P/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/08/2014, DJe 01/12/2014). Vale citar, também, o artigo 54 da Lei no 13.097/2015, o qual, em seu parágrafo único, estabelece que: “Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel”. Sobre críticas a essa Lei, cite-se o vídeo da profa. Rita Nolasco, intitulado "O princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel da Lei n. 13.097/2015 e a fraude à execução”, disponível no canal do YouTube do projeto Mulheres no Processo Civil Brasileiro:Acesso em 11 out. 2016.

[20] Há, mesmo na vigência do CPC15, quem não efetue distinção, para fins de exigir a demonstração de boa-fé pelo terceiro adquirente, entre os casos em que o bem está, ou não, sujeito a registro. Esse é o posicionamento de Gilberto Gomes Bruschi, Rita Dias Nolasco e Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo: “Entendemos que, da mesma forma que se impõe ao terceiro adquirente a demonstração da boa-fé mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem, para os bens não sujeitos à registro, também deverá ser no caso de não haver registro de bens sujeitos à registro. Ou seja, a interpretação do § 2o do art. 792 do CPC/2015 não poderá ser literal, tendo em vista que o objetivo maior é coibir a dilapidação patrimonial do devedor, ou seja, evitar as alienações em fraude à execução” (BRUSCHI, Gilberto Gomes; NOLASCO, Rita Dias; AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: RT, 2016, p. 105).

[21] Critica-se o artigo 792, § 3o, pois o mesmo não teria considerado a repercussão de sua disposição perante a esfera de terceiros e, logo, para a segurança das relações negociais. Assim, “parece ser temerário dizer que desde a citação da sociedade as alienações de bens pelos sócios estariam sujeitas à fraude de execução. Se a desconsideração for requerida apenas na fase de cumprimento, é bem possível que, entre a data da citação do réu (devedor) e a data da citação do terceiro (responsável) tenham decorrido anos. Se, durante esse tempo, sócios tiverem alienado patrimônio, não se afigura razoável que a eficácia da desconsideração ocorra de forma retroativa. Além disso, é preciso levar em conta que nem sempre a desconsideração será determinada com base na premissa de ter havido fraude ou confusão patrimonial” (YARSHELL, Flávio Luiz. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 249).

[22] Trata-se do caso em que foram vários atos abusivos ou fraudulentos que motivaram a desconsideração. Nessa hipótese, o marco é data de ocorrência do primeiro.

[23] Segundo observam Teresa Arruda Alvim Wambier, Maria Lúcia Lins Conceição, Leonardo Ferres da Silva Ribeiro e Rogerio Licastro Torres de Mello, “a decisão que declara a desconsideração, por ser declaratória, retroage pelo menos à data do requerimento. Deve-se ter em mente a necessidade de se verificar, pela análise dos elementos produzidos pela instrução, em que momento ocorreu o fato gerador da desconsideração (o ato praticado com excesso de poder, a confusão patrimonial etc.)” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim [et al.]. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 256). Em julgamento, no qual foi permitida a configuração de fraude à execução, em virtude de atos praticados por sócio de uma pessoa jurídica antes de sua citação no processo, foi registrada a natureza declaratória da decisão sobre a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, “tendo em vista a promiscuidade do patrimônio social com o dos sócios, de modo que os efeitos do ato judicial retroagem ao fato declarado”. Observe-se a ementa: Fraude à execução — Desconsideração da personalidade jurídica da executada decretada - Pretensão à penhora de imóvel do sócio alienado a terceiro – Decisão que a denega firmada em negócio anterior à citação do alienante - A natureza declaratória da decisão de desconsideração da personalidade jurídica retroage ao fato que a motivou – Fato posterior à citação da executada - Ineficácia reconhecida - Possibilidade do adquirente se defender por vias próprias – Decisão reformada - Agravo provido para esse fim (TJSP, Processo nº 0081407-58.2005.8.26.0000, 9ª Câmara de Direito Privado, Relator (a): João Carlos Garcia, Data de registro: 09/05/2006).

[24] Veja-se a posição de Flávio Luiz Yarshell: “(...) Para preservação da segurança, a solução será, então, a de sempre considerar a boa-fé do adquirente (entenda-se: daquele que adquiriu bens alienados pelo responsável, ao qual se chegou pela desconsideração), conforme § 2o do art. 792” (YARSHELL, Flávio Luiz. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 249).
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