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O prazo em dias úteis no art. 219 do CPC/2015: a problemática dos prazos processuais e materiais

Por: Juliana Melazzi Andrade
Graduanda em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Importante mudança introduzida pelo Código de Processo Civil/15 foi a previsão, no art. 219, da contagem dos prazos em dias úteis. Mais especificamente, o parágrafo único do artigo prevê que essa contagem valerá apenas para os prazos processuais. Entretanto, não previu o legislador tamanha dificuldade prática na identificação de quais seriam os denominados prazos processuais, fato que vem ocasionando, inclusive, decisões conflitantes nos mais variados tribunais.

Com efeito, o processo compreende o procedimento que consiste no conjunto de atos coordenados visando à outorga da tutela jurisdicional.[1] Há os chamados atos processuais, que compõem a cadeia dos atos do procedimento, e chamados atos do processo, que não fazem parte do procedimento em si.

Conforme a classificação a ser adotada, os atos processuais podem ser considerados não apenas aqueles do procedimento, como também os atos que interfiram na relação jurídica processual,[2] abrangendo também aqueles que tenham sido efetivamente praticados dentro do processo, a depender de sua relevância ou valor para o processo.[3] Além disso, o prazo poderá ser processual mesmo quando sua prática independer de intermediação de um representante judicial.[4]

Há diversas situações limítrofes, que geram controvérsias sobre a contagem em dias úteis ou corridos. Como exemplo, pode-se mencionar o art. 861 do CPC/2015, o qual estabelece que, uma vez penhoradas as quotas ou as ações de sócio em sociedade simples e empresária, o juiz assinalará prazo razoável, não superior a três meses, para que a sociedade apresente balanço especial; ofereça as quotas ou ações aos demais sócios; ou, na hipótese de desinteresse dos sócios, proceda à liquidação das quotas ou ações, depositando em juízo o valor apurado em dinheiro. Ou ainda o prazo de 10 dias para a apresentação de plano de administração quando há a “penhora de empresa” do art. 862 do CPC/2015. Questiona-se, assim, se os prazos para a prática de tais atos caracterizam-se como processuais e, portanto, se seriam contados em dias úteis.

Do mesmo modo, há controvérsias sobre o prazo de 15 dias do art. 523 e § 1º do CPC/2015 para pagamento voluntário pelo devedor no caso de condenação em quantia certa. Sobre o tema, recente julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concluiu ser esse um prazo de direito material, diferentemente do prazo para a impugnação ao cumprimento de sentença, que seria prazo processual.[5] De acordo com a posição seguida por diversas decisões do Tribunal carioca, o artigo teria como destinatário a parte, que é quem deve praticar o ato para pagamento em quinze dias, motivo pelo qual seria um prazo material.

Todavia, não é essa a orientação adotada em todos os tribunais, uma vez que há julgados defendendo a contagem em dias úteis para o pagamento espontâneo do débito pelo devedor, conforme julgados dos Tribunais de Justiça de São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná.[6] Considera-se, assim, que o pagamento se destina a produzir efeitos no processo, inibindo a deflagração das próximas etapas do cumprimento de sentença, com a realização de atos constritivos sobre o patrimônio do executado, caso não tivesse atendido ao comando judicial de quitação do débito.

Ainda, o art. 3º, §§ 1º e 2º do Decreto-Lei nº. 911/69 (que estabelece normas sobre a alienação fiduciária) permite ao proprietário fiduciário ou credor requerer a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, comprovando a mora ou o inadimplemento. Terá o devedor fiduciante, contudo, prazo de 5 dias após executada a liminar de busca e apreensão para purgar a mora, pagando a integralidade da dívida pendente. Seria esse prazo de direito material ou processual?

De acordo com acórdão proferido recentemente pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tratar-se-ia de hipótese de prazo de direito material. Segundo o desembargador relator, o parágrafo único do art. 219 do CPC/2015 teria estabelecido critério homogeneizador de contagem de prazos no processo civil a todos os atos processuais que tenham reflexos processuais, para evitar que em um mesmo processo haja, a depender da natureza stricto sensu do ato, duas formas de contagem.[7]

Já concluiu em sentido contrário o Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o fundamento de que o Decreto-Lei não teria estipulado a forma de contagem dos prazos, motivo pelo qual não (?) deveria ser adotado o regime fixado na lei processual.[8]

Ademais, pode-se pensar também nos 120 dias para a impetração de mandado de segurança, conforme disposto no art. 23 da Lei nº 12.016/2009. Quanto a esse prazo, já decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná que dever ser contado de forma contínua, reconhecendo como prazo de natureza material, sob o argumento de que, por ser prazo decadencial, não se interrompe com a superveniência de feriados ou finais de semana.[9] Tal entendimento, embora acompanhado por alguns autores, como Andre Roque e Daniel Amorim Assumpção Neves,[10] não é unânime na doutrina. Com efeito, para Marcelo Pacheco Machado, o mandado de segurança é mera técnica processual diferenciada e, portanto, o prazo estaria vinculado a um ato processual da parte, qual seja, a demanda inicial.[11]

Há, como visto, certa dificuldade em delimitar o que seriam prazos de natureza processual e o que seriam prazos de natureza material, o que gera, evidentemente, insegurança jurídica.

Caso muito debatido e que demonstra a insegurança jurídica decorrente da frágil diferenciação entre prazos materiais e processuais é o da contagem do prazo de stay period, relativo à suspensão das ações e execuções decorrentes do deferimento do processamento da recuperação judicial, previsto art. 6º, caput e § 4º da Lei nº. 11.101/05.

Quanto a esse ponto, há existência de posições conflitantes não apenas em tribunais distintos, como internamente, como é o caso do Tribunal de Justiça de São Paulo. No entender dos julgados que afastam a incidência do art. 219, a contagem em dias úteis equivaleria a permitir indistinta e indiscriminada prorrogação, o que seria contra legem.[12] Por outro lado, outros julgados entendem no sentido de sua aplicação, considerando, dentre os argumentos, o disposto no art. 189 da Lei nº 11.101/05, que prevê a aplicação subsidiária da norma processual aos procedimentos de recuperação e falência, ou, ainda, o fato de que a contagem em dias úteis possibilitaria que a recuperanda tivesse mais tempo para concluir as etapas precedentes do julgamento do pedido de recuperação, sem depender de eventual ampliação do prazo. [13]

Sobre o tema, Manoel Justino Bezerra Filho se pronunciou no sentido de que o prazo de 180 dias previsto no referido art. 6º, § 4º é misto, sendo ao mesmo tempo processual (no que se refere ao andamento da recuperação judicial) e material (no tocante ao direito dos credores que têm suas ações suspensas).

Interessante sugestão é feita pelo doutrinador quanto aos prazos no âmbito da recuperação judicial e da falência. De modo a reduzir a segurança jurídica, é proposta uma classificação em prazo processual como aquele que seguiria estritamente o previsto no CPC; prazo material absoluto, que seria contato de forma contínua porque não sofre interferência de outros atos ou prazos processuais em seu decurso; e prazo material relativo, no qual serão computados apenas os dias úteis porque depende da contagem de outros prazos de natureza processual.[14]

Evidente, portanto, a necessidade de uniformização desses entendimentos, de modo a se garantir a maior segurança jurídica e, consequentemente, a previsibilidade da resposta judicial. Insta frisar, ainda, a premência de casos iguais serem tratados de forma igual. Nessa esteira, importante ferramenta que se presta a esse objetivo é o sistema de precedentes, por meio do qual seria possível a uniformização não somente no âmbito de um mesmo tribunal (com o Incidente de Assunção de Competência ou de Resolução de Demandas Repetitivas), mas em todos, pela atuação dos tribunais superiores (Recursos Especial e Extraordinário Repetitivos).

[1] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo. v. 1: teoria geral do processo, 6. ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 452

[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v. 1, 17. ed., Salvador: Juspodivm, 2015, p. 373.

[3] SILVA, Ovidio Batista da; GOMES, Fabio Luiz. Teoria geral do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 207.

[4] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2017, p. 235.

[5] TJRJ, AI 0052087-69.2016.8.19.0000, 8ª CC, Rel. Des. Norma Suely Fonseca Quintes, j. 18.4.2017. No mesmo sentido: TJRJ, AI 0002470-09.2017.8.19.0000, 9ª CC, Rel. Des. Gilberto Dutra Moreira, j. 14.3.2017; TJRJ, AI 0058327-74.2016.8.19.0000, 12ª CC, Rel. Des. Mario Guimarães Neto, j. 28.3.2017.

[6] Decidindo incidir a contagem em dias úteis: TJSP, AC 0020211-22.2016.8.26.0576, 6ª CDPriv., Rel. Des. Paulo Alcides, j. 2.2.2017; TJSP AI 2015952-92.2017.8.26.0000, 32ª CDPriv., Rel. Des. Caio Marcelo Mendes de Oliveira, j. 25.5.2017; TJPR, AC 1622433-6, 16ª CC, Rel. Des. Lauro Laertes de Oliveira, j. 19.4.2017; TJPR, AI 1599220-6, 13ª CC, Rel. Des. Luiz Henrique Miranda, j. 8.2.2017; TJRS, AI 70069812337, 24ª CC, Rel. Des. Cairo Roberto Rodrigues Madruga, j. 28.9.2016.

[7] TJMG, AI 0248462-74.2017.8.13.0000, 17ª CC, Rel. Des. Amauri Pinto Ferreira, j. 14.6.2017.

[8] TJSP, AI 2148811-09.2016.8.26.0000, 36ª CDPriv., Rel. Des. Arantes Theodoro, j. 25.8.2016. Não parece, ainda assim, haver unanimidade no tribunal, uma vez que em outro julgado se pode vislumbrar o reconhecimento de pagamento pelo devedor no prazo de cinco dias úteis: TJSP, AC 0006925-26.2014.8.26.0356, 32ª CDPriv., Rel. Des. Luis Fernando Nishi, j. 18.5.2017.

[9] TJPR, ED 1596686-2/01, 5ª CC, Rel. Des. Luiz Mateus de Lima, j. 28.3.2017..

[10] ROQUE, Andre Vasconcelos. Comentários ao art. 219. In: GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; e OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Teoria Geral do Processo: Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Forense, 2015, p. 690; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 9. ed., v. único, Salvador: Juspodivm, 2017, p. 432.

[11] MACHADO, Marcelo Pacheco. Ainda sobre prazos no Novo CPC: mandado de segurança e prazos para o juiz. Jota. Publicado em 14.9.2015. Disponível em https://jota.info/colunas/novo-cpc/ainda-sobre-prazos-no-novo-cpc-mandado-de-segurancaeprazos-paraojuiz-14092015, acesso em 14.8.2017.

[12] TJSP, AI 2136791-83.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Ricardo Negrão, j. 29.5.2017; TJSP, AI 2237498-59.2016.8.26.0000, 33ª CDPriv., Rel. Des. Sá Moreira de Oliveira, j. 6.3.2017; TJSP, AI 2216537-97.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Fabio Tabosa, j. 15.5.2017.

[13] TJSP, AI 2072098-56.2017.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Fortes Barbosa, j. 14.6.2017; TJSP, AI 2147893-05.2016.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 29.3.2017; TJSP, AI 2210315-16.2016.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Hamid Bdine, j. 16.3.2016.

[14] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. A recuperação judicial e o novo CPC. Valor econômico. Publicado em 31.5.2016. Disponível em: http://www.valor.com.br/legislacao/4581655/recuperação-judicialeo-novo-cpc, acesso em 12/08/2017.
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