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O princípio da voluntariedade das partes para a escolha do mediador: Um diálogo entre o CPC e a Lei de Mediação.

Por: Carla Faria de Souza
Doutoranda em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petropolis - UCP. Especialista em Negociação pelo Harvard Negotiation Institute - Harvard Law. Mestranda em Psicologia pela Universidade Católica de Petropolis - UCP. Membro da Comissão de Mediação - OAB /Barra-RJ. Membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem. Professora e pesquisadora de Mediação e Meios Alternativos de Solução de Conflitos. Atualmente é Oficial de Registro Civil e Tabeliã no Estado de Minas Gerais.


O novo Código de Processo Civil trouxe algumas novidades; uma delas vem descrita logo no artigo 3º, cujos parágrafos 2º e 3º estabelecem algumas diretrizes em que devem pautar o novo processo civil, como a promoção das soluções consensuais de conflitos e o estímulo da Mediação.

Essa nova perspectiva de se observar o direito a partir de métodos consensuais de solução de conflitos vem se desenvolvendo a partir do final do século XX, principalmente nos EUA, quando a mediação foi resgatada para se inserir no contexto jurídico-social atual como uma forma alternativa e eficiente de solução de conflitos. Aos litigantes eram oferecidas diferentes alternativas para a resolução de suas disputas, sendo realizado um diagnóstico prévio do conflito, e encaminhado à forma mais adequada para cada situação.[1]

Essas manifestações dos meios alternativos de solução de conflitos, ou ADR’s, como eram chamados nos Estados Unidos, não se limitaram àquele país, principalmente no que concerne à mediação. A partir da virada do século XX, a mediação tornou-se formalmente institucionalizada, espalhando-se exponencialmente por todo o mundo.

Assim, a Mediação chega ao Brasil, e através da positivação pelo Código de Processo Civil, que traz diretrizes bem claras em relação ao fomento da mediação e outras formas de composição consensual de conflitos, e da Lei 13.140, de 2015 (Lei de Mediação), inaugura-se a positivação do instituto e seus estudos em território nacional.

Mas o sistema processual não se contentou com um postulado que estabelece apenas diretrizes fundamentais para a Mediação e outros métodos de solução de conflitos, regulamentou também a Mediação em outros aspectos.

Em relação ao instituto da Mediação, o Código de Processo Civil estabelece no art. 165 e seguintes princípios informadores da Mediação, como a independência, a imparcialidade, a autonomia da vontade, a confidencialidade, a oralidade, a informalidade e a decisão informada. Mesmo elencando os princípios informadores da mediação no caput do art. 165, o legislador teve o cuidado de enfatizar um importante princípio que pauta o instituto da mediação, quando no, § 4 º, estabelece que a mediação e a conciliação seriam regidas conforme a livre autonomia dos interessados, inclusive no que diz respeito à definição das regras procedimentais.

Justamente a partir da constatação desses dispositivos, que tratam de forma enfática a questão da autonomia da vontade dos interessados e da imparcialidade do mediador, assim como da omissão pelo sistema processual em relação às questões reguladas pela Lei de Mediação, é que nos faz indagar sobre a compatibilidade dos dispositivos em relação aos impedimentos e suspeições dos mediadores.

Dessa forma, debruçamo-nos então sobre a interessante controvérsia que incide na aplicação do princípio da voluntariedade das partes na escolha do mediador, prevista e enfatizada pelo sistema processual civil, em detrimento do art. 5º da Lei de Mediação, que prevê a aplicação das hipóteses legais de impedimento e suspeição dos juízes aos mediadores como forma de controlar a imparcialidade.

De um lado, podemos constatar o princípio da voluntariedade das partes, no qual a vontade dos interessados prevaleceria sobre hipóteses descritas como casos de impedimento ou suspeição, e que de fato não estão elencadas no sistema processual civil quando trata da Mediação, preferindo neste caso enfatizar a autonomia. Assim, segundo este entendimento, caberia às partes decidir, pela não aplicação das hipóteses de impedimento e suspeição.

De outro lado, teremos a importância da imparcialidade do mediador tal qual é estabelecida no art. 5º, da Lei de Mediação, quando prevê a aplicação das hipóteses legais de impedimentos e suspeições do juiz, aspecto que não é elencado nos dispositivos do sistema processual civil quando regula a Mediação, mas que trazem em seu substrato valores de ordem pública, não podendo ser afastado pela vontade das partes, uma vez que a observância da ordem pública seria um limite à autonomia da vontade dos interessados.

Passamos então a analisar a controvérsia suscitada entre o Novo Código de Processo Civil e a Lei de Mediação, elencando os fundamentos do posicionamento aqui adotado, que compreende a prevalência do princípio da autonomia da vontade sobre a norma prevista na Lei de Mediação.

O princípio da autonomia da vontade dos interessados na Mediação é uma das diretrizes do instituto, e isso pode ser aferido diante da opção do próprio legislador, que enfatiza o referido princípio tanto no art. 165, § 4º, do CPC quanto no art. 2º da própria Lei de Mediação.

O respeito à autonomia privada é uma característica presente tanto no sistema processual civil quanto na Lei de Mediação e claramente é uma das principais preocupações do instituto da Mediação, que demanda uma atividade fluída, dialógica, pautada na confiança entre as partes e o mediador.

A teoria geral da Mediação como método alternativo de solução de conflitos, dentro do qual se insere a Mediação Judicial e a Extrajudicial, considera a autonomia da vontade com uma das principais diretrizes do procedimento de mediação, tanto que enfatizada pelo Código de Processo Civil quando trata da mediação judicial[2] e pela Lei de Mediação. Os dispositivos legais tratam da mesma matéria, mas a Lei de Mediação regulamenta além do que foi estabelecido no sistema processual civil, ultrapassando os limites de disponibilidade das partes e do mediador de aferir em cada caso específico a imparcialidade.

De fato, a autonomia das partes em escolher o mediador demanda confiança, inserida na ideia de imparcialidade. Por isso, a imparcialidade do mediador também é um princípio da mediação, e vem também no rol elencado tanto no Código de Processo Civil, no art. 166, quanto na Lei de Mediação, no art. 2º, I. O princípio da imparcialidade do mediador em relação aos interessados estabelece a equidistância do mediador em relação às partes, que deve ser aferida pelas partes e pelo próprio mediador.

Ocorre que a Lei de Mediação vai além e, além de dispor sobre o princípio da imparcialidade, quando trata das disposições comuns em relação ao Mediador, prevê em seu art. 5º, que serão aplicadas ao mediador as mesmas hipóteses legais de impedimento e suspeição do juiz.

Nesse sentido, a Lei de Mediação ultrapassa o que foi estabelecido pelo legislador no sistema processual civil, interpretando a imparcialidade tão apreciada pela mediação em relação ao Mediador como uma justa medida estabelecida segundo parâmetros utilizados pelo próprio Judiciário, e faz isso mesmo quando o próprio sistema processual civil não o fez.

Não há dúvidas de que a atividade do mediador em muito se difere daquela desempenhada pelo juiz. O mediador exerce função de facilitador das partes, não exerce função dotada de poder decisório. Portanto, aplicar as mesmas hipóteses legais de impedimento e suspeição do juiz ao mediador seria aplicar uma mesma norma que estabelece limitações quanto ao exercício da função à atividade de natureza completamente diversa.

Outro aspecto importante em relação à limitação estabelecida pelo dispositivo da Lei de Mediação seria a inserção do artigo nas disposições gerais, aplicando-se à Mediação Judicial e à Mediação Extrajudicial. O que causa estranheza, e que deve ser ressaltado mais uma vez, é que o sistema processual civil, com competência material para regular esse aspecto, foi omisso, e a aplicação das limitações em relação aos impedimentos e suspeições na Mediação Extrajudicial, que se propõe mais livre em relação à autonomia privada seria despropositada, já que não seria previsto na Mediação Judicial, que traz uma maior regulamentação em relação à forma e ao procedimento a ser utilizado.

Inclusive, em relação à questão da autonomia privada dos interessados, principalmente em relação à Mediação Extrajudicial, interessante destacar que a American Arbitration Association, American Bar Association e Association For Conflict Resolution, estabelecem mediante seu modelo de conduta para Mediadores, na letra (c) do seu item C, que as partes, após a revelação do mediador acerca de um possível conflito de interesses que possa colocar em risco sua imparcialidade, possam acordar em mantê-lo como mediador daquele caso específico.[3]

Por mais que alguns entendam parecer possível[4] a aplicação do dispositivo em relação às limitações da atuação do mediador, tendo como fundamento a natureza da norma que estabelece as limitações, que por se referir a hipóteses que trazem em seu substrato valores de ordem pública, não poderiam ser afastados pela mera vontade das partes, pois a ordem pública seria um limite à autonomia da vontade, assim não nos parece o mais razoável quando analisado dentro do contexto proposto inclusive pelo novo sistema processual civil, quando prevê, em seu art. 3º, § 2º, que o Estado promoverá sempre que possível a solução consensual dos conflitos, e que isso incluiria todo aspecto histórico e teórico que envolve a matéria.

Assim, em relação a este ponto, em que pesem posicionamentos contrários, é certo dizer que o legislador, na tentativa de aproveitar impedimentos e suspeições dos juízes aos mediadores e do desconhecimento generalizado da matéria, pode ter se equivocado ao inserir na Lei de Mediação o referido dispositivo. O art. 5º, da Lei de Mediação, que estabelece a aplicação da norma processual que elenca as hipóteses legais de impedimento e suspeição dos juízes à atividade dos mediadores, quando analisado dentro de um contexto histórico, teórico e ainda levando em consideração a vontade da lei como um todo, uma vez que o novo sistema processual civil não se posiciona nesse sentido, demonstra-se despropositado.

É preciso admitir que quando o sistema processual civil insere como diretriz a promoção das soluções consensuais de conflitos, especificando a Mediação como um dos modelos a serem desenvolvidos, estabelecendo regulamentação própria e específica para o procedimento de Mediação Judicial, a intenção do legislador é a promoção da Mediação como um instituto próprio, que possui características e princípios próprios, não se confundindo com os princípios processuais e a atividade desenvolvida judicialmente, no cerne do processo.

A Mediação é um procedimento que mesmo previsto no sistema processual civil, não se confunde com a atividade desenvolvida no processo, visa a solucionar os conflitos de forma diversa daquela realizada pelo processo comum. Por isso, a tentativa de utilizar de forma analógica à função do mediador um dispositivo que se aplica à atividade desenvolvida ao terceiro juiz, responsável por solucionar o conflito, limitando pela Lei de Mediação sua atuação segundo normas processuais, não corresponde ao que se propõe em relação ao instituto da Mediação, suas diretrizes, seus princípios, sua razão de existir no próprio sistema que a institucionalizou.

O que se pretende com essa reflexão, que trata da controvérsia sobre a aplicação do princípio da voluntariedade das partes na escolha do mediador, é trazer o posicionamento aqui defendido como aquele que traz maior harmonia com todo o novo sistema processual civil e com as perspectivas de institucionalização da Mediação e dos métodos consensuais de solução de conflito no Brasil e no mundo. Considerando-se os postulados norteadores da nova sistemática processual, nos quais se favorece a cooperação e se incentiva mecanismos diversos de solução de conflitos, parece irrazoável tratar o art. 5º da Lei de Mediação de forma literal e estanque e com caráter meramente publicista. Seria uma forma de retroceder a todas as inovações que o novo sistema nos propõe e limitar a essência de um instituto que acaba de ser promovido e estimulado por todo ordenamento jurídico.

[1] RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. A Prática da Mediação e o Acesso à Justiça. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006. P. 68.

[2] A Mediação Judicial, em regra, exigiria maior regulamentação do instituto, por se tratar de espécie realizada necessariamente dentro do contexto do Judiciário, mas, neste caso, o Código foi omisso em relação à aplicação das hipóteses legais de impedimento e suspeição dos juízes ao mediador.

[3] LOPES, Vitor Carvalho. Breves observações sobre os princípios da imparcialidade e neutralidade do mediador: conceituação, importância e alcance prático desses princípios em um processo de mediação. Revista Eletrônica de Direito Processual Civil. Volume V. Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/23102. Acesso em: 20 de janeiro de 2017.

[4] LOPES, Vitor Carvalho. Breves observações sobre os princípios da imparcialidade e neutralidade do mediador: conceituação, importância e alcance prático desses princípios em um processo de mediação. Revista Eletrônica de Direito Processual Civil. Volume V. Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/23102. Acesso em: 20 de janeiro de 2017.
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