Artigos

O princípio do contraditório como garantia de influência e não surpresa

Por: Victória Moreira
Advogada, graduada em Direito, mestranda em Direito Processual Civil pela Universidade de Coimbra.


Proveniente de um modelo de processo democrático, o CPC/2015 é pautado na ideia de processo colaborativo[i] e dialogado. O diálogo judicial passou a garantir a democratização do processo, de modo a evitar que o poder do órgão judicial se transforme em um instrumento de opressão e autoritarismo[ii].

A percepção atual de contraditório[iii] não é a mesma outrora existente no ordenamento processual civil. Tradicionalmente, o princípio do contraditório se restringia: (i) ao pronunciamento de uma das partes sobre o pedido formulado pela outra parte; ou (ii) ao pronunciamento da parte contrária nos casos de oferecimento de prova por uma das partes[iv].

Embora a concepção tradicional do princípio do contraditório fosse válida e relevante para a eficácia do processo, ela tornou-se restritiva se analisada à luz do princípio do contraditório no âmbito do Estado Constitucional. A percepção atual é mais ampla pois requer influência das partes no provimento jurisdicional. Com isso, as partes podem contribuir com todos os elementos que tenham ligação com o objeto da causa e que sejam relevantes para a decisão de mérito justa[v].

Na perspectiva substancial do princípio do contraditório, a participação das partes passa a configurar uma colaboração para a decisão justa. Além disso, ao magistrado são conferidos os deveres de conduzir o processo de maneira dialogada[vi] e de preservar o direito à igualdade e à paridade de armas[vii]. Em decorrência disso, haverá a efetiva realização do princípio do contraditório.

Nesses termos, a vertente de compreensão do princípio do contraditório como garantia de influência assegura o diálogo e evita a atuação do órgão judicial de maneira autoritária. O CPC/2015 andou bem ao privilegiar não apenas o aspecto formal deste princípio (bilateralidade de audiência), mas também a sua aplicação como direito de influência, de modo que essa interpretação mais ampla é perfeitamente compatível com o direito brasileiro. Em verdade, a visão tradicional do princípio do contraditório não se ajusta com um Estado Democrático de Direito[viii].

Diante disso, o contraditório não mais se circunscreve no dizer e contradizer formal entre as partes. No Processo Democrático, o contraditório exerce uma função de contribuir para a fundamentação decisão, de modo que a participação das partes deixa de ser meramente aparente (formal)[ix]. Ou seja, o escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa no sentido negativo de oposição à atuação alheia para ser a influência no sentido positivo. Isso se traduz no direito das partes participarem ativamente no desenvolvimento e êxito do processo[x], inclusive nas questões que o magistrado pode conhecer de ofício.

Além da garantia processual de influência, o princípio do contraditório passa a ter a garantia de não surpresa das decisões[xi]. A proibição de decisão surpresa está disposta no artigo 10 do CPC/2015[xii], o qual determina que o juiz não poderá decidir com base em fundamento sobre o qual não tenha dado às partes oportunidade de manifestarem-se, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Por meio da garantia da não surpresa[xiii], toda a questão submetida a julgamento deverá passar pela manifestação das partes, sob pena de nulidade da decisão por violação ao princípio do contraditório. Afinal, não pode o tribunal decidir a causa com base em uma questão de fato ou jurídica que não se encontre à disposição da manifestação das partes no processo[xiv].

No que toca à proibição de decisão surpresa, interessante é a sua análise em conjunto com o direito português, o qual também está pautado por um processo cooperativo e dialogado. O CPC de Portugal de 2013, no seu artigo 3.º- 3, positivou a norma que garante o cumprimento do princípio do contraditório e busca proibir a decisão surpresa. O referido artigo dispõe que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”.

A questão que tem trazido incertezas na jurisprudência e críticas na doutrina lusitana é relativa à ressalva que foi incluída no artigo 3.º-3 (salvo caso de manifesta desnecessidade). As incertezas e críticas têm surgido pois os tribunais portugueses estão transformando a exceção da norma que proíbe surpresa das decisões em regra e isso acarreta uma grande perda na efetividade de aplicação do princípio do contraditório, de modo a não respeitar as garantias das partes.

Assim como no direito brasileiro, o dispositivo do código português foi elaborado com o intuito de vedar a prolação de decisão surpresa. No entanto, o que se percebe é que ao incluir a referida ressalva os tribunais portugueses permanecem tratando o princípio do contraditório na sua perspectiva tradicional[xv], tornando insuficiente a regra de proibição de decisão surpresa.

O fato é que a regra de proibição de decisão surpresa tem o intuito de fazer com que o contraditório seja um efetivo limite à atuação do magistrado - privilegiando o diálogo e evitando o autoritarismo. Nesse sentido, entende-se que o CPC/2015 do Brasil buscou de forma clara e efetiva traçar esse limite para a atuação do magistrado, não abrindo margem para a discricionariedade do juiz decidir quando deve ou não respeitar o contraditório (como foi feito no ordenamento português).

Tratar do efetivo limite a atuação do magistrado se torna importante uma vez que o CPC/2015 ampliou os poderes conferidos ao juiz. No entanto, embora ampliados os poderes, o CPC/2015 não consagrou um processo autoritário pois não reduziu as garantias de defesa das partes[xvi]. Pelo contrário, buscou instrumentos para garantir que a defesa das partes fosse respeitada.

O CPC/2013 português aumentou os poderes do magistrado, inclusive de forma mais ampla que o CPC/2015 brasileiro. Entretanto, não conseguiu garantir - de maneira tão eficaz como ocorreu no Brasil - que a prolação de decisões surpresas fosse evitada, como forma de assegurar o respeito ao princípio do contraditório.

De outra banda, cabe referir que quando se analisa o princípio do contraditório como direito de influência também é necessário identificar os deveres que ele transmite ao magistrado. Entre esses deveres está o dever do julgador levar em consideração os argumentos expostos pelas partes[xvii] para fundamentar sua decisão[xviii], uma vez que esses argumentos devem refletir-se na fundamentação das decisões judiciais[xix].

O dever do magistrado de considerar os argumentos expostos pelas partes é identificado no CPC/2015 pela leitura do art. 489, § 1º, IV. Este artigo dispõe que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que não enfrente todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador[xx]. Nesse sentido, a decisão não fundamentada ou fundamentada de forma insuficiente[xxi] deverá ser considerada nula[xxii].

A ideia referida neste dispositivo é a de que para que a decisão jurisdicional seja legitima não basta o convencimento do juiz, é necessário que o magistrado justifique a racionalidade de sua decisão com base no caso concreto, nas provas e na sua convicção[xxiii]. A decisão que não analisa todos os fundamentos[xxiv] da tese derrotada é contrária à garantia do contraditório na sua perspectiva substancial[xxv], uma vez que, nessa perspectiva, o juiz não se enquadra como sujeito do debate processual. Assim, a motivação da decisão é o limite ao julgador e o direito fundamental ao jurisdicionado[xxvi].

O contraditório é, então, um importante instrumento, tanto para validar a atuação das partes no deslinde processual, como para validar a cognição de questões de ofício do juiz. O atual processo civil é colaborativo, dialogado e não autoritário. Para que ele consiga se estabelecer no Estado Democrático sem autoritarismo é necessário que sejam respeitadas as garantias fundamentais das partes por meio da aplicação do princípio da igualdade e do contraditório.

Nesse sentido, entende-se que o CPC/2015 veio como um verdadeiro garantidor do princípio do contraditório na sua vertente substancial e como um instrumento, aparentemente eficaz, de proibição de decisão surpresa. Afinal, um Código pautado no processo cooperativo e dialogado, mesmo que conferindo maiores poderes ao magistrado, deverá abrir espaço no processo para a discussão em contraditório[xxvii], para que as considerações das partes sejam analisadas e possam influir para uma decisão final justa.

Por fim, cabe referir que o princípio do contraditório é importante tanto para validar a atuação das partes no deslinde processual, como para validar a cognição de questões de ofício do juiz. Através de sua correta aplicação, é possibilitado as partes a manifestação sobre questões postas de ofício ou não. Em suma, o contraditório é uma garantia que as partes têm ao processo justo e colaborativo.

[i] Para melhor elucidação do tema ver DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do Princípio da Cooperação no Direito Processual Civil Português. Coimbra Editora. Coimbra, 2010 e MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2009.

[ii] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Juiz e o Princípio do Contraditório. Revista Forense, vol. 323, ano 89, p. 55-59. Rio de Janeiro, 1993, p. 59.

[iii] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. 3ª edição. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2016, p. 111 referem que “O principal fundamento da comparticipação (cooperação) é o contraditório como garantia de influência e não surpresa.”.

[iv] FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: Conceito e princípios gerais à luz do novo código. 3ª edição. Coimbra Editora. Coimbra, 2013, p. 124.

[v] FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: Conceito e princípios gerais à luz do novo código. 3ª edição. Coimbra Editora. Coimbra, 2013, p. 125.

[vi] CABRAL, Antonio do Passo. Contraditório (Princípio do -). In Ricardo Lobo Torres; Eduardo Takemi Kataoka; Flávio Galdino. (Org.). Dicionário de Princípios Jurídicos. 1ª edição. Campus Jurídico. Rio de Janeiro, 2010, p. 201.

[vii] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil. Vol. 1. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2015, p. 499.

[viii] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A influência do contraditório na convicção do juiz: fundamentação de sentença e de acórdão. Revista de Processo, nº 168. P. 53-60, 2009, p. 55.

[ix] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo, nº 168. P. 107-141, 2009, p. 109.

[x] FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: Conceito e princípios gerais à luz do novo código. 3ª edição. Coimbra Editora. Coimbra, 2013, p. 125.

[xi] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. 3ª edição. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2016, p.112.

[xii] Ver também artigo9ºº doCPC/20155.

[xiii] O Enunciado33 da ENFAM de certa forma, flexibilizando o artigo100 doCPC/20155, entende que “É desnecessário ouvir as partes quando a manifestação não puder influenciar na solução da causa.”.

[xiv] DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Volume 1. 18ª edição. Editora JusPODIVM. Salvador, 2016, pp. 82-84.

[xv] FREITAS, José Lebre de. Sobre o Novo Código de Processo Civil (uma visão de fora). Disponível em:.

[xvi] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. 3ª edição. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2016, p.128.

[xvii] Cf. Enunciado1288 do FPPC esse dever vale inclusive para alegações apresentadas pelo amicus curiae.

[xviii] Artigo933, inciso IX daConstituição Federall e artigo111 doCPC/20155.

[xix] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A influência do contraditório na convicção do juiz: fundamentação de sentença e de acórdão. Revista de Processo, nº 168. P. 53-60, 2009, p. 55.

[xx] Talvez oCPCC/2013 português tenha falhado nesse ponto. O artigo 607-4 não confere ao magistrado o dever de enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo.

[xxi] Fundamentar de forma insuficiente não é o mesmo que fundamentar de forma sucinta. Nesse sentido o Enunciado 10 da ENFAM dispõe que “A fundamentação sucinta não se confunde com ausência de fundamentação e não acarreta a nulidade da decisão se forem enfrentadas todas as questões, cuja resolução, em tese, influencie a decisão da causa.”.

[xxii] Nesse mesmo sentido, Enunciado3077 do FPPC.

[xxiii] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil. Vol. 1. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2015, p. 116.

[xxiv] O Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão contrária à garantia do contraditório na sua perspectiva substancial, uma vez que entendeu ser dever do julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida, de modo que ele não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão (Cf. EDcl no MS 21.315/DF, Rel. Ministra DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO), PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 08/06/2016, DJe 15/06/2016).

[xxv] Cabe referir que o controle da decisão não fundamentada deve se dar por meio da interposição de embargos de declaração (art. 1.022, II CPC/2015). DIDIER JR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de; BRAGA, Paula Sarno. Comentários ao art. 489. In: CABRAL, Antonio; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 714.

[xxvi] MOTTA, Cristina Reindolff da. A motivação das decisões cíveis: como condição de possibilidade para resposta correta/adequada. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre, 2012. Ver também TARUFFO, Michele. A motivação da sentença civil. Tradução Daniel Mitidiero, Rafael Abreu, Vitor de Paula Ramos. 1ª edição. Marcial Pons. São Paulo, 2015.

[xxvii] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo, nº 168. P. 107-141, 2009, p. 125.
« Voltar