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Primeiras impressões sobre a estabilidade da decisão saneadora

Paula Menna Barreto Marques, mestre em Direito Processual pela UERJ. Advogada.
 
O novo Código de Processo Civil, em sua seção IV, denominada ‘Do saneamento e da Organização do Processo’, dispõe sobre o comumente denominado despacho saneador.

Antes mesmo de adentrar a questão da estabilização, é imprescindível destacar que, já pela redação dada ao artigo 357, do NCPC, cai por terra a discussão sobre a natureza jurídica dessa manifestação judicial. Não há mais dúvidas: trata-se, por expressa disposição legal, de uma decisão (e não de um despacho de mero expediente)[1]!

Apesar de parecer lateral, esta matéria preliminar é de extrema relevância, pois é nesta decisão, agora chamada de decisão de saneamento e de organização do processo, que diversas questões fundamentais são resolvidas.

De fato, pelo novo Código, o Juiz deve, na decisão saneadora, (i) declarar que o processo está em condições de seguir em frente[2]; (ii) resolver as questões processuais pendentes; (iii) delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; (iv) definir a distribuição do ônus da prova; (v) delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; (vi) designar a audiência de instrução e julgamento.

Houve clara ampliação da matéria a ser apreciada nessa decisão, bem como a delimitação especifica de seu escopo e objetivo.

Além disso, previu o artigo a necessidade de realização de audiência conjunta nas causas de alta complexidade e, ainda, a possibilidade de realização de negócio jurídico processual para delimitar, conjuntamente, as matérias que serão tratadas na decisão saneadora.

Até aqui, nos parece que a redação do artigo merece verdadeira exaltação, pois atendeu aos anseios da doutrina, adequando o provimento às necessidades do processo.

A grande problemática está em seu parágrafo primeiro.

Determina o citado parágrafo que, findo o prazo para as partes solicitarem esclarecimentos sobre a decisão saneadora, esta tornar-se-á estável.

A doutrina diverge sobre o que seria esta estabilidade citada no artigo.

Por óbvio, não podemos dar a essa estabilidade a força e, portanto, os efeitos, da coisa julgada.

Como se sabe, a coisa julgada garante ao jurisdicionado a estabilidade das decisões proferidas pelo Judiciário, aperfeiçoando a ideia de imutabilidade e indiscutibilidade, impossibilitando a perpetuação das incertezas sobre a situação jurídica submetidas à apreciação do Estado.

Considerando que a decisão saneadora é ainda uma decisão interlocutória que não resolve a lide (ou parte dela), apesar de visar garantir a segurança jurídica, não pode ser equiparada à coisa julgada.

Por outro lado, não nos parece ser o caso de uma verdadeira preclusão.

A preclusão é a perda de uma situação jurídica processual ativa[3]. Visa garantir o andamento do processo, permitindo a sua “marcha para frente”, rumo a um destino final.

Com a preclusão, no conceito de Chiovenda, as partes perdem a faculdade de praticar determinado ato.

Entretanto, conforme previsto no artigo 1.009, § 1º, não precluem as decisões contra as quais não cabe agravo de instrumento, as quais poderão ser objeto de futura apelação ou impugnáveis através de contrarrazões.

Deste modo, partindo-se do pressuposto de que o rol de hipóteses para interposição do recurso de agravo de instrumento é taxativo, e que as matérias que serão objeto da decisão saneadora não constam dos casos ali enumerados[4], é evidente que a decisão não preclui para as partes.

Então, qual seria a natureza jurídica desta estabilidade ?

Nos parece que a means legisdo artigo que a previu seria garantir aos jurisdicionado que, definidas as questões ali determinadas, as partes não seriam surpreendidas por novo provimento judicial em sentido diverso.

Ou seja, declarada a validade do processo, determinadas as questões de fato e de direito que serão discutidas no processo, definindo as provas, bem como o ônus probatório, as partes teriam a justa expectativa de que não haveria uma inovação na decisão judicial, atendendo ao princípio da não-surpresa[5].

Trata-se, portanto, de uma estabilidade pro iudicato(ou preclusão judicial) e, não, de uma preclusão para as partes.

Na verdade, como já afirmado, contra esta decisão não cabe recurso de imediato pelas partes, que deverão aguardar até o proferimento da sentença para impugná-la.

Assim, haja vista que a decisão poderá ser questionada oportunamente, não há que se falar em sua estabilidade para as partes.

No que diz respeito à estabilidade da decisão para o magistrado, nada mais seria do que a perda do poder de decidir a questão, em razão da apreciação anterior (preclusão consumativa).

A doutrina diverge sobre a possibilidade de preclusão para o juiz[6], em especial no que se refere às matérias de ordem pública, as quais podem ser decididas até mesmo de ofício[7].

A decisão saneadora visa “oferecer às partes segurança jurídica quanto à preservação dos efeitos das questões já decididas e à previsibilidade dos limites em que os poderes decisórios ainda incidirão no processo”[8].

Deste modo, no que se refere às questões já decididas[9], há verdadeira preclusão para o juiz para reapreciar os pontos já abordados na decisão saneadora.

Nesse sentido, é o enunciado nº 424 da súmula da jurisprudência dominante do STF, que determina que “Transita em julgado o despacho saneador de que não houver recurso, excluídas as questões deixadas, explicita ou implicitamente, para a sentença”.

Também nessa linha, prevê o art. 505 a impossibilidade de apreciação pelo juiz das questões já decididas. Esse artigo, apesar de dizer respeito à sentença, nos parece ser perfeitamente aplicável às decisões interlocutórias.

Trata-se, portanto, de uma estabilidade em primeiro grau de jurisdição, que impediria ao juiz a alteração do objeto da cognição (ressalvado fato ou direito superveniente)[10].

Isto porque, como já dito, a decisão poderá ser modificada quando do julgamento do eventual recurso de apelação ou contrarrazões.

Esse entendimento, parece atender aos princípios do due process of law, em especial o do contraditório e da segurança jurídica, garantindo-se às partes a previsibilidade do julgamento, com ampla possibilidade de participação no desenvolvimento do processo e no julgamento final.




[1]Por todos, cite-se BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 18 ed., Rio de Janeiro : Forense, 1996, p. 61.

[2]FERNANDES, Luis Eduardo Simardi. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. Teresa Arruda Alvim Wambier... (et al.), coordenadores. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 969.

[3]DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. – 18 ed. – Saraiva : Jus Podivm, 2016, p. 425.

[4]Excetua-se a hipótese de cabimento de agravo de instrumento contra a parte da decisão que decide a redistribuição do ônus da prova (art. 1.015, XI).

[5]Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

[6]Para aprofundamento do tema, remetemos o leitor à NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Preclusões para o juiz. São Paulo : Método, 2004, p. 233-255.

[7]Apesar da riqueza do debate, não adentraremos, nesse artigo, na questão relativa à preclusão judicial das matérias de ordem pública.

[8]GRECO, Leonardo. Instituição de processo civil, volume II. – 3ª ed. – Rio de Janeiro : Forense, 2015, p. 95.

[9]Sobre a inadmissibilidade de decisões implícitas TALAMINI, Eduardo. Saneamento do processo. In: Revista de Processo. São Paulo : RT, 1997, n. 86, p. 103.

[10]CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. – São Paulo : Atlas, 2015, p. 214.
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