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Qual o limite da defesa do sócio recém-incluído no processo pelo incidente de desconsideração da personalidade jurídica?

Por: Beatriz Galindo
Mestranda pela Universidade de Lisboa, pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC-Rio e graduada pela Universidade Federal Fluminense. Advogada.


O CPC/15 vem sendo muito elogiado pela regulamentação da forma processual para realizar a desconsideração da personalidade jurídica[1], mas infelizmente disse menos do que deveria. Faltou especificar as matérias de defesa que poderão ser abordadas pelo sócio – agora parte do processo. Não se está tentando dar ao sócio[2], que mal chegou, o direito de sentar na janela. Só apenas não vamos levá-lo no bagageiro, até porque ele que vai pagar a conta.

A situação é a seguinte: um consumidor processa uma empresa por falha na prestação do serviço. Após apresentada contestação e produzidas as provas, o juiz condena a empresa a indenizar o autor em 100 mil reais. Transcorridos todos os recursos possíveis, a decisão é mantida em sua integralidade. Iniciada a fase de cumprimento de sentença não são encontrados bens para satisfazer o valor da condenação. A empresa fecha as portas e o autor, ora exequente, pede ao juiz que desconsidere a personalidade jurídica da sociedade por encerramento irregular, para que a dívida seja paga com o patrimônio dos sócios.

Para um leigo parece absurdo quando se trata de uma sociedade limitada – que possui esse nome justamente por ter sua responsabilidade limitada ao patrimônio da empresa, sem atingir o dos sócios –, no entanto, o Direito não poderia ser conivente com práticas abusivas e graves lesões à sociedade, de modo que se fez necessário flexibilizar esta limitação para admitir que o encargo seja transferido aos sócios – com o cuidado de manter a medida como excepcional.

As causas de desconsideração da personalidade jurídica são amplamente abordadas pela legislação, doutrina e jurisprudência no direito material, e não vou me aventurar por estas águas. O que me importa é que até março de 2016 a medida vinha sendo usada à exaustão nos processos, sem que houvesse uma uniformização do procedimento para este pedido. Cada tribunal tinha sua praxe, e coitado do advogado recém-formado ou forasteiro, pois as regras variavam drasticamente de um canto ao outro, sendo preciso conhecer o costume do julgador.

Enfim temos o CPC/15, que nos art. 133 a 137, regulou o procedimento da desconsideração da personalidade jurídica. Está lá quando se pode requerer, quem é legítimo, se pode ser feita de maneira inversa, a quem devemos comunicar, se suspende ou não o processo, e por fim, o prazo de 15 dias para o sócio apresentar sua defesa.

Por se tratar o incidente de um verdadeiro direito de ação[3], no qual o sócio tem por objetivo conseguir uma decisão que certifique a inexistência de relação jurídica pela qual seu patrimônio estaria sujeito à execução, a defesa deve se restringir a questionar os fundamentos para a desconsideração da personalidade jurídica – na medida em que este é o objeto da demanda incidental.

Como o incidente tem o condão de desmembrar um assunto, que será apreciado em momento exclusivo, nada mais justo que não se discuta o mérito da ação principal antes mesmo de restar decidido se deve ou não ser desconsiderada a personalidade jurídica.

Isso não significa que, superado o incidente, o sócio seja inserido no processo de mãos atadas. Afinal, como integrante do polo passivo, nada mais justo que o sócio tenha legitimidade e interesse para atacar não apenas a responsabilidade pela dívida, mas também a sua existência, validade e eficácia[4].

É importante lembrar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica faz parte do Título III (do Livro III) do CPC, que trata das intervenções de terceiro. Daí já se deduz que a pessoa do sócio não se confunde com a pessoa da sociedade, de modo que o sócio era terceiro, estranho à lide, antes de ser inserido à força no processo.

Ou seja, quando a sociedade apresentou sua defesa, produziu prova e recorreu, o fez sem a participação do sócio. Se ao desconsiderar a personalidade jurídica não for dada a oportunidade ao sócio de rediscutir o mérito do processo, estar-se-ia dizendo que o direito de defesa do sócio foi substituído pela defesa produzida pela sociedade.

Se assim fosse possível, seria o mesmo que admitir que em caso de litisconsórcio passivo, apenas um dos réus tenha o direito de se manifestar no processo, devendo o outro manter-se calado, e pior: ainda arcar com as consequências financeiras da condenação[5].

Comparar o sócio ao litisconsorte passivo é plenamente possível, visto que ele passa a integrar a relação como parte[6]. A sua citação já demonstra, assim como o fato de contra ele incidir a coisa julgada[7].

Inclusive daí decorre mais um motivo para que o sócio possa explorar o mérito da causa, questionando os fatos modificativos, extintivos e impeditivos do direito do autor. Ora, se nunca mais ele terá o direito de discutir aquele assunto, que o faça bem feito durante o processo, antes de constituída a coisa julgada.

E mais, se sobre ele recai a coisa julgada, para que o processo seja reconhecido sob a égide de um Estado Democrático de Direito é necessário que seja conferido o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Não se está exigindo nada além do mesmo direito de defesa conferido à sociedade, a diferença é apenas o momento em que será exercido, que por óbvio será posterior, visto que o sócio nem sequer integrava a ação no momento em que a sociedade exerceu seu direito[8].

Pode parecer um texto de obviedades, mas quando se é o requerente do pedido de desconsideração a última coisa que se pretende é dar passos atrás para retomar uma discussão já encerrada.

Não estaria preclusa a matéria de defesa se não abordada na contestação?

Considerando que a imutabilidade decorrente da coisa julgada, em regra, só tem efeito para as partes que participaram da formação daquela decisão, não se pode dizer que essa atinge o sócio quando ele não estava presente no processo no momento da sua formação.

Se o sócio foi citado, e sua entrada no processo se consagrou com a decisão que deferiu a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, nada mais justo que seu prazo para apresentar contestação, requerer provas e recorrer de decisões pretéritas se inicie da decisão que decide o incidente.

Sem dúvida causará um tumulto no processo, mas absolutamente necessário para garantir os direitos fundamentais da nova parte processual.

Defender a constrição de bens de um sócio que não pôde discutir a existência, validade e eficácia da dívida é limitar o direito de defesa, e, por conseguinte, é privá-lo de seus bens sem o devido processo legal, o que é vedado pelo art. 5º, LIV da Constituição Federal.

Como o objetivo aqui defendido é conferir a ampla defesa ao sócio recém-inserido no processo, isso significa dizer que em uma execução ele poderá embargar, na qualidade de executado, apesar dos embargos opostos pela sociedade já terem sido julgados e transitado em julgado.

A posição agora defendida é bem diferente da realidade anterior ao CPC/15, como atentam Bruschi, Nolasco e Amadeo, à época da vigência do CPC/73 “a defesa do sócio se dava por meio de embargos de terceiro, sendo limitada a cognição à configuração ou não da hipótese de desconsideração da personalidade jurídica e à liberação dos bens constritos”[9].

Diante de um CPC em que o sócio da pessoa jurídica desconsiderada passa a integrar a ação na qualidade de parte, e estará sujeito aos efeitos da coisa julgada, não se vislumbra uma saída constitucional para defender a restrição das matérias de defesa.

Atenta-se apenas para o momento adequado para a apresentação da defesa, que permanece um tanto quanto obscuro. Para evitar o tumulto no incidente de desconsideração, opto por escolher o desmembramento, de modo que inicialmente se deve abordar apenas questões relativas à responsabilidade. Se o julgador decidir pelo deferimento da desconsideração, inicia-se o prazo para que o sócio apresente sua defesa – agora sim completa, com todos os argumentos admitidos por lei para a espécie[10] –, seja por embargos (quando se tratar de execução de título extrajudicial), seja por impugnação (na fase de cumprimento de sentença), seja por contestação (quando estiver em curso a fase de conhecimento).

Evidentemente, o direito de resposta estará garantido à parte contrária, que optou por reiniciar a discussão da existência, validade e eficácia da dívida, ao requerer a desconsideração da personalidade jurídica.

[1] Sobre o tema, sugiro a leitura do texto da Marcela Perez, publicado nesta coluna https://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/395467082/o-incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridicaea-fraudeaexecucao-no-ncpc.

[2] Opta-se aqui por abordar apenas a desconsideração da personalidade jurídica tradicional, mas o mesmo se aplica à inversa, sendo esta omitida para facilitar a linguagem e compreensão textual.

[3] Defendendo que o incidente constitui um direito de ação: YARSHELL, Flavio Luiz. Art. 133. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[4] Neste sentido: YARSHELL, Flavio Luiz. Art. 135. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[5] Tal conclusão decorre da caracterização do sócio como parte, e não apenas como responsável patrimonial secundário.

[6] Antes mesmo da entrada em vigor doCPC/155, André Pagani de Souza já defendia que a desconsideração tornaria o sócio parte, na qualidade de litisconsórcio passivo ulterior. Cf: Desconsideração da personalidade jurídica – aspectos processuais. São Paulo: Saraiva, 2011. Em sentido contrário, entendendo que o sócio integra a relação processual apenas como responsável pela satisfação da dívida, sem ser constituído como parte, temos parte da jurisprudência, aqui representada pelo julgado: TJSP, Ap 148.388/SP, 10ª Câmara de Direito Privado, j. 21.03.2000, rel. Des. Souza José. Com base no CPC/15, entendendo que o sócio se torna parte do processo após deferido o incidente: FREIRE, Alexandre; MARQUES, Leonardo Albuquerque. Art. 134 e 135. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 206-207; CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasilieiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 95; BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 178; YARSHELL, Flavio Luiz. Art. 133 a 137. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[7] Considerando que o sócio é inserido no processo na qualidade de sujeito passivo – parte processual – por conseguinte sobre ele recaem os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada. Neste sentido: FREIRE, Alexandre; MARQUES, Leonardo Albuquerque. Art. 134. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 206.

[8] Importante esclarecer que este momento distinto somente é obvio por se trata de caso em que houve um incidente. O CPC admite que a desconsideração seja requerida na petição inicial, quando a defesa ocorrerá simultaneamente à da sociedade, porém neste caso não haverá incidente, por expressa determinação legal.

[9] BRUSCHI, Gilberto Gomes. NOLASCO, Rita Dias. AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. Fraudes Patrimoniais e a Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: RT, 2016, p. 157.

[10] Neste mesmo sentido, admitindo a defesa não apenas de matérias adstritas à responsabilidade: YARSHELL, Flavio Luiz. Art. 135. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – Volume Único. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 314.
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