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Reflexos do novo CPC na Apelação: Efeitos do Reconhecimento de matéria de ordem pública pelo Tribunal.

Por: Fernanda Medina Pantoja
Advogada, sócia do escritório Sérgio Bermudes, graduada em direito, doutora e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora visitante na Universidade de Cambridge (Inglaterra). Professora de Direito Processual Civil na PUC-Rio. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual.


O sistema recursal sempre foi apontado como um dos principais focos de deficiência do processo civil brasileiro, e por isso foi objeto de grande parte das diversas alterações legislativas havidas nas últimas décadas. Era já esperado, portanto, que também o CPC/2015 se detivesse em modificar a disciplina dos recursos, orientado pela busca da maior eficiência processual. Nem a apelação – dito “recurso por excelência”, por sua importância e longevidade – ficou a imune às intensas mudanças.

Uma das mais polêmicas consistiu na exclusão do juízo prévio de admissibilidade do juízo a quo[1], bem como da sua competência para conceder efeito suspensivo ao recurso, como tentativa de simplificação procedimental. No entanto, manteve-se a interposição e o processamento do apelo em primeira instância, a tornar duvidosa a eficácia da reforma para o pretendido fim de agilizar o trâmite recursal.

Como já se vê nos juízos de primeiro grau, ainda que haja um vício evidente na admissibilidade da apelação (a intempestividade, por exemplo), resta ao juiz, após abrir vista ao recorrido, tão somente a possibilidade de certificar a deficiência nos autos, determinando, em seguida, o seu encaminhamento ao tribunal – esse sim o órgão competente para, se for o caso, inadmitir o recurso. Seria mais lógico, sem dúvida, que a lei houvesse poupado os esforços estéreis de ambos os juízos (a quo e ad quem) em hipóteses como essa, permitindo pôr fim mais prematuramente ao recurso.

Outra modificação de destaque, dessa vez mais elogiável, consistiu na ampliação do efeito devolutivo[2] da apelação, que passou a ser também o recurso cabível contra as decisões interlocutórias proferidas na fase de conhecimento e não impugnáveis por agravo. Trata-se de uma interessante aposta na concentração das impugnações, voltada a otimizar o rito processual, ao evitar sucessivas interrupções em seu curso.

Apesar de tantas mudanças, o CPC/2015 deixou de encampar a mais relevante pela qual ansiava a doutrina, ao preservar o criticado efeito suspensivo ope legis da apelação. A opção legislativa, lamentavelmente, reforçou o desprestígio ao primeiro grau de jurisdição, além de estimular o deletério uso do recurso como meio protelatório do cumprimento da sentença.

Há também alterações que, embora não expressas nos dispositivos legais atinentes à apelação, extraem-se de uma leitura sistemática do Código. Este artigo detém-se, especificamente, em uma delas: a restrição a que o tribunal de segunda instância, ao conhecer de uma matéria de ordem pública no julgamento do apelo, estenda os efeitos de sua decisão aos capítulos não impugnados pelo recorrente.

Vale lembrar alguns conceitos fundamentais. O efeito devolutivo da apelação consiste no fenômeno da transferência do poder jurisdicional ao tribunal, podendo ser analisado sob dois diferentes aspectos: o da sua extensão (dimensão horizontal) e o da sua profundidade (dimensão vertical).[3]

A extensão da devolução determina o quê se submete, por força do recurso, ao julgamento pelo órgão ad quem. É medida, a teor do art. 1.013, caput, do CPC/2015, pela extensão da própria matéria impugnada. Em outras palavras, é o apelante quem define quais pedidos (ou quais capítulos da sentença) serão objeto de julgamento pelo tribunal. Excepcionalmente, a lei amplia a extensão do efeito devolutivo independentemente de pedido do recorrente, como nos casos do art. 1.013, § 3º do CPC/2015, que enunciam a já consagrada “teoria da causa madura”.[4]

A profundidade da devolução, por sua vez, consiste no material que o órgão ad quem analisará para julgar, isto é, representa o conjunto de questões suscetíveis de serem apreciadas em relação a cada pedido ou parcela da sentença que foi objeto do recurso. Aqui se encontram não apenas as questões decididas e debatidas no processo, mas também aquelas de ordem pública, ainda que não invocadas pelas partes.[5]

Sob a vigência do Código anterior, havia grande controvérsia – tanto na doutrina quanto na jurisprudência – se, uma vez reconhecida uma matéria de ordem pública (como a falta de um pressuposto processual ou de uma condição da ação), a decisão a seu respeito, em sede de apelação, poderia afetar também a parte da sentença que não tivesse sido impugnada. Imagine-se, por exemplo, uma sentença que acolheu os pedidos de condenação do réu ao (i) cumprimento de obrigação de fazer, (ii) pagamento de danos materiais e (iii) pagamento de danos morais, e cujo recurso de apelação voltou-se somente contra o primeiro capítulo, concernente à obrigação de fazer. Caso o tribunal, no julgamento do recurso, identificasse que o autor é parte ilegítima, poderia julgar extinto todo o processo sem julgamento de mérito, inclusive os capítulos não recorridos, pela ausência de condição da ação?

A controvérsia parte necessariamente da acepção emprestada ao efeito devolutivo. Ao entender-se que corresponde simplesmente à manifestação do princípio dispositivo na instância recursal, somente fica devolvida ao tribunal a matéria que o recorrente efetivamente impugnou. Por isso é que, visando explicar a possibilidade de o tribunal julgar matéria de ordem pública, Nelson Nery Jr.[6] formulou a ideia do efeito translativo, ligado ao princípio inquisitório, por meio do qual se permitiria ao julgador apreciar, conhecer e julgar tais matérias independentemente de impugnação específica, em razão do caráter público do processo. Por concebê-lo de forma autônoma, o autor defende que o efeito translativo não estaria limitado pelo efeito devolutivo, de modo que a decisão do tribunal sobre questões de ordem pública poderia afetar, inclusive, os capítulos de mérito não impugnados no recurso.

A se considerar, de forma diversa, que o conhecimento das matérias de ordem pública integra a profundidade do efeito devolutivo – como ora se defende – os efeitos do reconhecimento de uma nulidade estarão obrigatoriamente limitados ao capítulo recorrido.

No CPC/2015, porém, esse debate parece definitivamente superado, diante do advento do julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356). Isso porque, sendo as decisões parciais de mérito passíveis de serem alcançadas pela autoridade da coisa julgada material, jamais poderão ser afetadas por julgamentos parciais posteriores. Assim, de forma análoga, os capítulos da sentença não impugnados também ficam sujeitos à coisa julgada, e as questões que lhe digam respeito, ainda que envolvam matéria de ordem pública, não poderão ser conhecidas pelo tribunal.[7]

A regra, contudo, comporta exceções: caso o capítulo não impugnado seja juridicamente dependente daquele recorrido, não ficará sujeito à formação de coisa julgada.[8] Por exemplo, se a sentença acolhe dois pedidos, de anulação do contrato e de devolução das parcelas pagas, e o réu recorre tão somente do capítulo que anulou o contrato, eventual decisão do tribunal que reconheça a falta de algum pressuposto processual será extensiva também ao outro, por força da dependência jurídica entre ambos.[9]

A partir de uma análise mais detida da matéria, podem-se identificar outras questões interessantes. Veja-se o caso de uma apelação interposta pelo autor sucumbente, que veicule, como único fundamento, a impugnação de uma determinada decisão interlocutória (como o indeferimento de uma prova pericial). Se, no exame desse recurso, o tribunal considerar que a ação está prescrita, a sua decisão deverá necessariamente se limitar aos capítulos da sentença a que relacionada à prova pericial. No entanto, supondo-se que, nessa mesma hipótese, em sede de contrarrazões de apelação, o réu tenha se insurgido contra interlocutórias comuns a toda a sentença, seu recurso (embora subordinado à apelação do autor) terá o efeito de ampliar a devolução e ensejar, portanto, a extensão da decisão que reconhecer eventual prescrição a todos os capítulos da sentença.

Tais exemplos decerto não exaurem as inúmeras controvérsias que poderão advir da prática forense, sempre mais criativa e imprevisível do que podemos supor, mas ilustram a importância de se realizar, em qualquer caso, uma interpretação sistemática da lei, em especial da disciplina atinente aos recursos em geral e à apelação.

[1] Conforme o Enunciado999 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, “o órgão a quo não fará juízo de admissibilidade da apelação”. Não poderia ser outro o entendimento, já que não há na nova lei previsão de recurso cabível contra a decisão do juiz que eventualmente inadmitisse o apelo.

[2] Como se explica adiante, a chamada extensão da devolução refere-se à amplitude da matéria submetida ao julgamento do órgão ad quem por força do recurso, conforme as atemporais lições de BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 12ª ed., rev. E atual. De acordo com o novo Código Civil e com a Emenda Constitucional nº 45. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 431.

[3] A utilização das expressões “horizontal” e “vertical” remonta a DINAMARCO, Cândido Rangel. Os efeitos dos recursos. In NERY JR., Nelson; e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.), Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis, vol. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 34.

[4] Trata-se dos casos em que a lei atribui ao tribunal a competência para julgar desde logo o mérito da causa, quando estiver em condições de imediato julgamento, não apenas no caso de apelações interpostas contra sentenças terminativas (conforme já previa o art. 515, § 3º, do CPC/73), como nas demais hipóteses legais acrescentadas peloCPC/20155, todas assentes na jurisprudência: decretação de nulidade da sentença por falta de fundamentação ou por não ser congruente com limites do pedido ou causa de pedir; omissão no exame de um dos pedidos; e reforma da sentença que reconheceu prescrição ou decadência.

[5] Ainda que o relator e o colegiado possam conhecer de ofício questões de ordem pública, deverão necessariamente abrir vista às partes para se manifestarem, na forma do inédito art. 9333 doCPC/20155, orientado pelo princípio da “não surpresa”.

[6] NERY JR., Nelson. Teoria Geral dos Recursos, 7ª ed., rev. E atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 460 e ss.

[7] Nesse sentido, o Enunciado nº 1000 do Fórum Permanente de Processualistas Civis dispõe que “não é dado ao tribunal conhecer de matérias vinculadas ao pedido transitado em julgado pela ausência de impugnação”.

[8] A ideia da dependência está inserta no art. 2811 doCPC/20155, segundo o qual “anulado o ato, consideram-se de nenhum efeito todos os subsequentes que dele dependam, todavia, a nulidade de uma parte do ato não prejudicará as outras que dela sejam independentes”.

[9] Em casos como esse, não deverá ser sequer admitida a cisão de julgamento por meio da prolação de interlocutória de mérito, como bem defende CORREIA FILHO, Antonio Carlos Nachif. Julgamentos parciais no processo civil. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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