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Relembrando: no Brasil, o Código de Processo Civil não é automaticamente aplicado a procedimentos arbitrais

Por: Ana Carolina Weber
Sócia de Eizirik Advogados. ArbitralWomen Board Member. Mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutorando em Direito Comercial pela USP. Coordenadora regional do Comitê Brasileiro de Arbitragem para o Rio de Janeiro.

Nos últimos quinze anos, a utilização da arbitragem como um método alternativo para resolver disputas tem significativamente crescido no Brasil. A arbitragem foi declarada constitucional e, além disso, não só as partes estão estipulando cláusulas compromissórias nos seus contratos, mas também os tribunais estão proferindo decisões que reconhecem a jurisdição dos árbitros e seu poder de “dizer o direito no caso concreto”.

Apesar de o número de procedimentos arbitrais ter aumentado no país, várias partes signatárias de contratos com cláusulas compromissórias têm escolhido a sede de suas arbitragens fora do Brasil.

Entretanto, a intensificação da arbitragem nem sempre é seguida por uma maior qualidade das sentenças e pelo uso técnico pelas partes desta espécie processual. Na verdade, rememorar as características do instituto da arbitragem é extremamente importante, tendo em vista, especialmente, que, em 2015, a Lei nº 9.307/1996 sofreu uma série de alterações e o novo Código de Processo Civil entrou em vigor.

O novo CPC possui algumas previsões a respeito do procedimento arbitral, o que poderia levar, ao intérprete desavisado, à conclusão sobre a aplicabilidade de todos esses dispositivos à arbitragem. Mais ainda, um exame superficial da questão poderia fazer com que se pretendesse aplicar a procedimentos arbitrais formalismos, regras específicas e tecnicidades próprias ao foro do contencioso cível.

No entanto, uma análise detalhada acerca do novo CPC mostra que a maioria das disposições sobre arbitragem visa ao reconhecimento do poder jurisdicional dos árbitros e à conferência de meios para que o procedimento arbitral e os tribunais interajam entre si[2].

Voltando um pouco no tempo, a prerrogativa de “dizer o direito no caso concreto” é tradicionalmente uma atribuição dos Tribunais. A “jurisdictio” é historicamente um dever do estado, uma vez que os juízes possuem poder exclusivo para aplicar e decidir sobre a lei[3].

Nada obstante, as partes privadas, ao longo do tempo, enfrentaram sérias dificuldades com a ausência de especialidade e com a falta de tempo dos juízes estatais para decidir conflitos complexos. Nesse sentido, identificou-se na autonomia da vontade o poder de designar determinadas pessoas, com conhecimento específico da matéria em disputa, para criar um procedimento que atendesse aos interesses das partes e permitisse que a controvérsia fosse satisfatória e qualitativamente decidida[4].

Arbitragem foi, assim, desenvolvida como um sistema de peculiaridades, regras e princípios próprios[5]. Além disso, é importante notar que a arbitragem é um método contratual criado pelas partes para resolver suas disputas, ou seja, o escopo é determinado autonomamente pelas partes e deve ser utilizado para tipos específicos dos conflitos.

Desse modo, arbitragem é um sistema autônomo que pode interagir com outros subsistemas da Lei, como o processo civil. No Brasil, há uma lei específica para regular e determinar os princípios e as regras que devem conduzir esse método alternativo de resolução de conflitos.

A Lei de Arbitragem brasileira, quando foi promulgada, reconheceu a natureza jurisdicional da arbitragem e alinhou os dispositivos com as características mais valiosas da arbitragem internacional, como a liberdade de escolha de aplicar a lei ao procedimento. Nesse sentido, é importante ressaltar que as pesquisas realizadas pela Escola de Arbitragem Internacional da Queen Mary University of London mostraram, ao longo dos anos, que essa flexibilidade tem sido vista como uma das três mais valiosas características da arbitragem internacional[6].

Nesse sentido, artigo 21 da Lei nº 9.307/1996 estabelece que “a arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento”.

Percebe-se, dessa forma, que a Lei de Arbitragem brasileira reconhece a autonomia das partes em relação à escolha das regras aplicáveis ao procedimento, não estabelecendo limites ao uso de normas estabelecidas por uma instituição arbitral, por leis processuais de outros países, ou até mesmo à fixação de regras procedimentais específicas para determinado caso[7].

A título ilustrativo, uma arbitragem pode ter sede no Brasil, sua sentença ser proferida no território nacional, mas as regras relativas à condução do procedimento terem que observar o disposto no Código de Processo Civilfrancês. As partes ainda podem escolher se querem uma arbitragem regida pela Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da UNCITRAL, e adicionalmente adotar métodos da commom law, como discovery e cross examination[8].

Esse cenário é perfeitamente possível no nosso ordenamento jurídico e temos visto cada vez mais interação e utilização da commom law e outros sistemas legais nas arbitragens brasileiras. É comum, por exemplo, os tribunais arbitrais solicitarem a apresentação de redfern schedules para decidir acerca da exibição de documentos.

Os limites dessa interação da arbitragem com outros sistemas e da autonomia das partes para determinar o procedimento aplicável estão estabelecidos na Lei de Arbitragem. O § 2º do artigo 21 estabelece os princípios fundamentais que devem ser observados em uma arbitragem no Brasil, os quais evidentemente não podem ser derrogados pelas partes. São eles: (i) o princípio do contraditório; (ii) o princípio da igualdade das partes; (iii) o princípio da imparcialidade do árbitro; e (iv) o princípio do livre convencimento do árbitro.

Com isso, nota-se, que a Lei de Arbitragem não determina que as partes devam observar o Código de Processo Civil, nem que elas estão sujeitas às suas limitações e formalidades.

Em essência, as partes têm o livre direito de escolher as regras procedimentais de uma instituição arbitral, o que não exclui a possibilidade de elas decidirem aplicar o CPC – ainda que isso não seja recomendável. Desse modo, é possível que Termos de Arbitragem estabeleçam que os dispositivos do CPC sejam utilizados subsidiariamente à Lei de Arbitragem para reger o procedimento arbitral.

Contudo, se as partes não tiverem estabelecido na convenção de arbitragem nem nos Termos de Arbitragem e se as regras institucionais escolhidas pelas partes não fizerem nenhuma referência ao Código de Processo Civil, as partes não podem usar essas regras em seus memoriais nem os tribunais arbitrais devem fundamentar as decisões com base nos dispositivos do referido código.

Na verdade, deve-se ter em mente que (i) a arbitragem é designada para um campo específico de conflitos; (ii) a Lei nº 9.307/1996 é a lei de arbitragembrasileira e deve, desse modo, ser aplicada aos procedimentos arbitrais cuja sentença venha a ser proferida em território nacional; e (iii) arbitragem não é a solução para todos os problemas dos Tribunais de Justiça do país.

Tribunais e partes ademais devem lembrar que, em alguns casos, a ausência de regras específicas para os procedimentos arbitrais pode ser relevante para que os árbitros conduzam com mais maleabilidade as arbitragens. Por exemplo, se as regras institucionais não estabelecem expressamente os tipos provas periciais que podem ser usadas ou requeridas, essa lacuna autoriza o tribunal a decidir sobre qual método de prova é mais recomendável: a utilização de laudos periciais escritos, uma apresentação oral dos peritos, ou até mesmo a possibilidade de um perito produzir um laudo em conjunto com o assistente técnico da parte.

Dessa maneira, enquanto os dispositivos da Lei 9.307/1996 continuarem regulando a arbitragem no Brasil e o princípio da autonomia das partes for acolhido por nosso ordenamento jurídico, não se deve transportar os aspectos formais e menos flexíveis do Código de Processo Civil para a Arbitragem.

[1] Sócia de Eizirik Advogados. ArbitralWomen Board Member. Mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutorando em Direito Comercial pela USP. Coordenadora regional do Comitê Brasileiro de Arbitragem para o Rio de Janeiro.

[2] JOSÉ ANTONIO FICHTNER, SERGIO MANNHEIMER, ANDRE LUIS MONTEIRO. “Repercussões do Anteprojeto e do Substitutivo ao Projeto deNovo Código de Processo Civill na Arbitragem”. In Revista Brasileira de Arbitragem. Porto Alegre: Síntese. V.8. N.29. P. 11.

[3] GILBERTO GIUSTI. “O Árbitro e o Juiz: Da Função Jurisdicional do Árbitro e do Juiz”. In Revista Brasileira de Arbitragem. Porto Alegre: Síntese. Vol. 1. N.3. 2004. P.2. RICARDO DE CARVALHO APRIGLIANO. “Jurisdição e Arbitragem no Novo Código de Processo Civil”. In: A Reforma de Arbitragem. LEONARDO DE CAMPOS MELO and RENATO RESENDE BENEDUZI (coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2016. 250-251.

[4] Conforme observa CARMONA, há perfeita equivalência entre a arbitragem e os procedimentos estatais. CARLOS ALBERTO CARMONA. O processo Arbitral. In: Revista de Arbitragem e Mediação. Ano 1. N.1 jan-abr 2014. P. 22.

[5] EDUARDO DE ALBUQUERQUE PARENTE. Processo Arbitral e Sistema. São Paulo: Atlas. 2012. P.44

[6] The 2015 International Arbitration Survey: Improvements and Innovations in International Arbitral conducted by Queen Mary University of London and White&Case

[7] JACOB DOLINGER, CARMEM TIBURCIO. Direito Internacional Privado: arbitragem comercial internacional. Rio de Janeiro: Renovar. 2003. P. 286.

[8] ANDRE DE ALBUQUERQUE CAVALCANTI ABBUD. Resenha do livro. “A Arbitragem na Teoria Geral do Processo”. In: Revista Brasileira de Arbitragem. Porto Alegre: Síntese. V.11. N.412004.. P. 233.
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