Artigos

Tutela de Evidência: Algumas respostas.

Por: Fernanda Medina Pantoja
Advogada. Graduada em direito, doutora e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora visitante na Universidade de Cambridge (Inglaterra). Professora de Direito Processual Civil na PUC-Rio. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual.


Embora o Código de Processo Civil anterior já previsse algumas hipóteses de tutela de evidência, sem atribuir-lhe essa denominação[1], o novo Código consagrou-a definitivamente, ao ampliar de modo significativo o seu cabimento e reservar um capítulo específico para discipliná-la.

Em síntese, a tutela de evidência consiste em uma espécie de tutela provisória que independe da demonstração do perigo de dano. O art. 311 do CPC elenca as quatro situações de “eloquência probatória”[2] que viabilizam a sua concessão: (i) quando houver abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do demandado; (ii) quando as alegações do autor estiverem comprovadas por documentos e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou súmula vinculante; (iii) quando houver pedido de entrega de coisa e prova documental da existência do contrato de depósito[3]; e (iv) quando a inicial estiver instruída com prova documental suficiente, contra a qual o réu não apresente prova capaz de gerar dúvida razoável.[4]

De modo geral, a introdução de novas hipóteses autorizadoras da tutela de evidência foi festejada pela doutrina, porque, ao adiantar-se a tutela pleiteada pelo requerente, de forma provisória e em sede de cognição sumária, possibilita-se a redistribuição dos custosos ônus inerentes ao tempo do processo, em favor daquele cujo direito seja demonstrável prima facie.

Inúmeras questões polêmicas já foram suscitadas a respeito da tutela de evidência[5] – pode ser concedida de ofício?; pode ser concedida quando da prolação de sentença?; pode ser dada em favor do réu?; pode compreender medidas de natureza cautelar?; pode ser deferida antes da citação do réu, no caso do art. 311, inciso I?; pode ser dada com base em outros precedentes obrigatórios, no caso do art. 311, inciso II?[6]; cabe estabilização da tutela de evidência?; entre outras.

A partir da análise randômica[7] de alguns Tribunais de Justiça do país, verifica-se que a maior parte das controvérsias ainda não foi objeto de debate e solução em sede jurisprudencial. Nada obstante, a respeito de uma ou outra questão, identificam-se desde logo certas tendências, bem como a prolação de algumas interessantes decisões.

Constatou-se, de início, que a tutela da evidência fundamentada no abuso do direito de defesa, dita sancionadora (inciso I do art. 311), é mais rara na prática[8], sendo mais frequente a sua concessão com base na existência de precedentes[9] (inciso II) ou de prova documental suficiente não refutada pelo réu[10] (inciso IV).

Notou-se, também, que os tribunais se inclinam no sentido de afastar a possibilidade de concessão inaudita altera parte da tutela de evidência em caso de abuso do direito de defesa e de prova documental suficiente não contraditada pelo réu (incisos I e IV, respectivamente), a partir de restritiva interpretação da norma do art. 9º, II, do CPC, que exige a prévia oitiva das partes antes de qualquer decisão, excetuando somente os casos de tutela de evidência previstos no art. 311, incisos II e III (baseados, respectivamente, na existência de tese firmada em precedentes vinculantes e na existência de contrato de depósito).[11] E mais: mesmo quando fundamentada no inciso II (precedentes vinculantes), os tribunais têm sido reticentes em concedê-la antes de instaurado o contraditório.[12]

Não se encontrou nenhum caso de tutela de evidência antecedente. De outra ponta, conforme o que se apurou da jurisprudência, a tutela de evidência incidental tem sido concedida a qualquer tempo, seja na sentença (como forma de atribuir-lhe eficácia imediata), seja na fase executiva[13], por exemplo, desde que configurados os requisitos legais.[14]

Outra acalorada discussão envolve a possibilidade de determinar-se, com fundamento em um dos incisos do art. 311, uma providência de natureza cautelar – isto é, que assegure a futura realização do direito, sem satisfazê-lo desde logo, como acontece às medidas satisfativas/antecipatórias.

Ao enfrentar a questão, a 25ª CC do TJRJ rechaçou a existência da chamada “tutela de evidência cautelar”, asseverando que, “a teor do art. 301 do CPC/2015, apenas as tutelas de urgência de natureza cautelar podem ser efetivadas mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito, inexistindo previsão nesse sentido para a efetivação das tutelas de evidência, uma vez que no caso deste tipo de tutela inexiste perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo”[15].

Em outros casos, porém, sem que sequer se cogitasse em tese dessa discussão, houve o deferimento de medidas cautelares com base na evidência.[16] Não nos parece, de fato, que as providências voltadas a garantir o resultado útil do processo exijam necessariamente a comprovação da urgência. Na ação de improbidade, por exemplo, admite-se a concessão de tutela cautelar sem a comprovação do periculum in mora, desde que demonstrados a gravidade dos fatos e o montante do prejuízo causado ao erário.

Tem-se admitido a vantajosa fungibilidade entre as espécies de tutela provisória: se a parte requereu a tutela de urgência, mas não logrou comprovar o periculum in mora; e o julgador reconhece que estão presentes os requisitos autorizadores da tutela de evidência, pode conceder esta no lugar daquela.[17] E vice-versa: se a hipótese não se adéqua às situações elencadas no art. 311, mas restam configurados os pressupostos da tutela de urgência, também esta pode ser deferida no lugar da tutela de evidência.[18]

Por fim, verificou-se que a tutela da evidência, muitas vezes, é dada em hipóteses que poderiam – ou deveriam – ensejar a prolação de sentença de julgamento parcial de mérito (arts. 355 e 356). Embora as situações não se confundam em tese[19], na prática parece difícil aferir a intensidade da cognição realizada pelo julgador, máxime quando se tem exigido, para a tutela de evidência, o contraditório prévio.

De todo modo, a partir da análise da jurisprudência, o que se extrai de mais relevante é o acolhimento cada vez mais frequente da tutela de evidência. Inevitavelmente, aos poucos, as diversas controvérsias acerca do tema hão de ser devidamente respondidas pelos tribunais – espera-se que no sentido do recrudescimento da sua utilização.

[1] A possibilidade de concessão liminar do direito da parte sem a exigência da demonstração de periculum in mora, bastando apenas a verossimilhança das alegações, existia no CPC/73 não apenas em alguns procedimentos especiais (como ações possessória e monitória), mas também no procedimento comum, na hipótese do antigo art. 273, inciso II.

[2] Conforme o preciso termo usado por GODINHO, Robson. Comentários ao art. 311. In CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo, Comentários ao Novo Código de Processo Civil, 2ª ed. Rio de Janeiro: Grupo Gen/Forense: 2016, p. 487.

[3] Comprovada a existência do contrato, o juiz expedirá ordem para entrega da coisa, como ocorria no procedimento especial da ação de depósito (arts. 901 a 906 do CPC/73).

[4] Lembre-se que, além desses casos, há outras hipóteses específicas de tutela de evidência, dispersas na lei processual, em procedimentos especiais (como os do art. 558 e 701) e na apelação (art. 1.012, par.4º), por exemplo.

[5] Algumas delas foram abordadas por Carolina Uzeda, em artigo publicado nesta mesma coluna, em 2016, “NCPC: Requisitos para concessão da tutela provisória de evidência” (https://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/327399892/ncpc-requisitos-para-concessao-da-tutela-....

[6] Enunciado 30 do Enfam: “É possível a concessão da tutela de evidência prevista no art. 311, II, do CPC/2015, quando a pretensão autoral estiver de acordo com orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade ou com tese prevista em súmula dos tribunais, independentemente de caráter vinculante.”

[7] Analisaram-se mais de oitocentas decisões proferidas nos últimos dois anos nos Tribunais do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Distrito Federal, Pernambuco e São Paulo.

[8] Em ação para rescisão de promessa de compra e venda de bem, por inadimplência do promitente comprador, concedeu-se a tutela de evidência com base no abuso do direito de defesa do demandado, que se mantinha na posse do bem há anos e utilizou-se da reconvenção, com pedido de transferência da propriedade, para obter vantagem indevida. TJRS, 17ª CC, AC 70071067961, rel. Des. Liege Puricelli Pires, j. Em 15.12.2016.

[9] TJMG, AI 0872719-51.2016.8.13.0000, rel. Des. Renato Dresch, j. Em 02.03.2017.

[10] O TJMG, em ação visando o cancelamento de contrato de renegociação de dívidas celebrado via Whatsapp, concedeu a tutela de evidência para suspender o desconto das parcelas, porque provado que o pedido de cancelamento fora feito dentro do prazo legal e restara negado pela ré (AI 0528709-92.2016.8.13.0000, rel. Des. Aparecida Grossi, j. Em 02.03.2017). O mesmo TJMG também deferiu tutela de evidência para impor obrigação de fazer a proprietário de imóvel em área de preservação permanente, em ação civil pública de responsabilidade por danos ao meio ambiente (AI 0445363-49.2016.8.13.0000, rel. Des. Jair Varão, j. Em 10.11.2016. Já o TJRJ concedeu tutela de evidência para determinar a expedição de diploma de curso de pós-graduação (25ª CC, AI 0009094-11.2016.8.19.0000, rel. Des. Luiz Fernando Pinto, j. Em 06.04.2016).

[11] TJSP, 25ª Câm. De Direito Privado, AI 2220760-93.2016.8.26.0000, rel. Des. Marcondes D’Angelo, j. Em 16.03.2017; TJSP, 10ª Câm. De Direito Público, AI 2258445-37.2016.8.26.0000, rel. Des. Torres de Carvalho, j. Em 06.02.2017; TJPE, AI 0005168-76.2016.8.17.0000, rel. Des. Marcio Fernando de Aguiar Silva, j. Em 08.02.2017; TJRS, 9ª CC, AI 70070010012, rel. Des. Eugenio Facchini Neto, j. Em 19.10.16; TJRJ, 26ª CC, AI 0023608- 66.2016.8.19.0000, Rel. Des. Ricardo Alberto Pereira, j. Em 10.11.2016; TJRJ, 27ª CC, AI 0065735-19.2016.8.19.0000, rel. Des. Tereza Cristina Sobral Bittencourt Sampaio, j. Em 06.04.2017. A 17ª CC do TJRJ, por sua vez, fixou ainda a necessidade de que a conduta protelatória para fins de caracterização do abuso de direito dê-se em sede processual (AI 0053207-50.2016.8.19.0000, Rel. Des. Edson Aguiar de Vasconcelos, j. Em 02.02.2017).

[12] TJRS, 17ª CC, AI 70072212376, rel. Des. Liege Puricelli Pires, j. Em 25.04.2017.

[13] TJRS, 13ª CC, AI 70072670458, rel. Des. Andre Luiz Planella Villarinho, j. Em 30.03.2017.

[14] O Enunciado 423 do FPPC dispõe que “cabe tutela de evidência recursal”.

[15] TJRJ, 25ª CC, AI 0012873-37.2017.8.19.0000, rel. Des. Sergio Seabra Varella, j. Em 26.04.2017.

[16] A 23ª CC do TJRJ, por exemplo, concedeu a tutela de evidência para o fim de promover arresto, em ação visando à rescisão contratual e ressarcimento de valores pagos, a partir do reconhecimento de que a prova documental demonstraria inequívoco atraso e impossibilidade de conclusão do empreendimento imobiliário no prazo ajustado (AI 0006813-48.2017.8.19.0000 e AI 0008085-77.2017.8.19.0000, rel. Des. Celso Silva Filho, j. Em 19.04.2017).

[17] TJRJ, 21ª CC, AI 0012413-84.2016.8.19.0000, rel. Des. Andre Emilio Ribeiro Von Melentovytch, j. Em 20.04.2017.

[18] TJRJ, 25ª CC, AI 0042328-81.2016.8.19.0000, rel. Des. Marianna Fux, j. Em 23.11.2016.

[19] “Se não houver possibilidade da prática de qualquer ato subsequente que possa vir a infirmar o acolhimento do pedido do autor, deverá o juiz fazer uso do julgamento antecipado do mérito. Se, em respeito ao direito de defesa do réu ou a alguma outra circunstância, for necessário ou útil facultar a prática de atos subsequentes, deverá o juiz inclinar-se pela tutela de evidência.” GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. Ed. Gen/Forense, 2015, p. 371.
« Voltar