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Uma análise econômica do duplo juízo de admissibilidade dos recursos Especial e Extraordinário

Por: Renata Fonseca Ferrari
Advogada. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Membro do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO). Coordenadora da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP - 12ª Subseção
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O artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, apregoa que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Depreende-se desse enunciado a consagração do devido processo legal como garantia limitadora ao exercício do poder. Não obstante as dimensões doutrinárias que falam em devido processo legal formal e material, o grande desafio é compreender a extensão pragmática de decisões substancialmente devidas. Para tanto, essa compreensão não deve estar restrita à atividade intelectivo-prescritiva do julgador. Deve alcançar também a atividade legiferante, haja vista que o modelo civil law adotado no Brasil contempla a lei como a fonte primordial de que se serve o intérprete para aplicar o direito[i]. Assim, o prognóstico da criação de uma lei, o diagnóstico de uma lei vigente e a investigação do real sentido de validade da norma jurídica constituem o primeiro passo para se chegar à genuína dimensão de decisão materialmente devida.

Em termos de ciências sociais, dos recursos metodológicos disponíveis, uma das ferramenta mais avançada para levar a efeito essa intricada tarefa é a análise econômica do direito. Por isso, será por meio dela que se demonstrará que o juízo bipartido de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário não é eficiente para gerenciar o irrefreável avanço da litigância recursal.

Em atenção ao enfoque teórico do instituto jurídico a ser analisado, aos leitores zetéticos[ii] impõe-se uma sutil advertência: nada há de inovador nas linhas deste escrito quanto ao sentido puramente analítico do juízo de admissibilidade. Nesse ponto, os ávidos por conceituações inusuais terão de contentar-se com as premissas dogmáticas outrora fixadas. O desiderato, por ora, é mais modesto. Para que os esforços aqui empreendimentos convertam-se, minimamente, em contribuição científica, propõe-se tão só uma interpretação menos ortodoxa e mais interdisciplinar.

Grosso modo, a ressalva epistemológica é importante para desmistificar a ideia de que o direito processual civil – essencialmente dogmático – não pode ser impregnado por ideias utilitaristas, próprias da economia. Conquanto aparentemente inconciliáveis, o modo de interpretar o embate existente entre a máxima da eficiência (defendida pela economia) e o sentimento de justiça (subjacente ao direito) conduzirá a um desfecho não excludente dos valores em disputa. Na verdade, ao medir-se a validade da norma por seu grau de eficiência, prioriza-se a concepção consequencialista de justiça, cuja baliza é maximização do bem-estar social [= máximo resultado com mínima assimetria distributiva][iii]. Nesse particular, filosoficamente, a análise econômica do direito distancia-se tanto do deontologismo jurídico quanto do realismo jurídico. Para este, a validade da norma é aferida pela legitimidade do seu procedimento de criação; para aquele, o valor da norma emana da sua própria condição de ato normativo.

Antes de adentrar a análise econômica do duplo juízo de admissibilidade dos recursos às instâncias superiores, é indispensável que algumas noções de economia sejam apresentadas.

Em sua definição clássica, a ciência econômica é assim conceituada: “o estudo de como a sociedade administra seus recursos escassos”[iv]. Dessa concepção, infere-se que um dos objetos de análise da economia é o comportamento racional dos indivíduos enquanto administradores desses recursos. Esse segmento exsurge não só como doutrina aplicada a fenômenos estritamente econômicos, mas como corrente científica pautada na teoria da escolha racional, que se vale de institutos econômicos para explicar o processo de tomada decisão, típico do comportamento humano.

O processo de deliberação racional consiste em três etapas lógico-dedutivas, cujo iter corresponde a três preceitos econômicos fundamentais[v]: (i) identificar o tradeoff; (ii) computar os fatores que impulsionam o comportamento; e (iii) avaliar o custo de oportunidade. Tradeoff é a expressão usada pelos economistas para traduzir uma situação de escolha conflitante, na qual o ato de decidir implica, necessariamente, uma abdicação. Ou seja, escolher fazer alguma coisa significa deixar de fazer outra. Já os fatores que estimulam o comportamento são os incentivos que conduzem o indivíduo a enveredar por determinado caminho. Os economistas partem da premissa de que as pessoas reagem a incentivos; logo, toda escolha é motivada por determinado fator. Por fim, o custo de oportunidade equivale à escolha abdicada. Isto é, o custo de alguma coisa corresponde àquilo de que se desistiu para obtê-la.

Assim, considerando-se as opções possíveis [= tradeoff], privilegiar-se-á uma em detrimento das outras quando alguns fatores revestirem a opção eleita da aparência de melhor escolha [= incentivos], e desde que os benefícios por ela proporcionados superem os custos embutidos nas abstenções dela resultantes [= custo de oportunidade < benefício obtido]. Noutros termos, o indivíduo só decidirá depois de avaliar as consequências [= relação custo-benefício] da sua escolha[vi].

Como se vê, a utilidade de uma escolha é aferida pelos efeitos positivos que dela decorrem. Todavia, não é só das consequências úteis do ato decisório que se extrai a sua eficiência. Afetado pelos valores de justiça social, o conceito de eficiência será preenchido pela fórmula do bem-estar social, em que a maximização de um resultado ao qual se atribui valor só será admitida quando todos os envolvidos no processo decisório sejam beneficiados[vii]. Em economia, tal alocação eficiente de recursos, intitulada ótimo de Pareto, ocorrerá quando determinada medida melhorar a situação de alguém sem piorar a situação de outrem.

Redimensionada ao estudo do direito, a teoria da escolha racional é, basicamente, o substrato da análise econômica do direito. Portanto, essa emergente disciplina pode ser definida como o método eficiente de deliberação jurídica, cuja finalidade investigativa dá origem a pelo menos quatro campos de pesquisa distintos: (i) exercício prognóstico de avaliação dos impactos da promulgação da lei; (ii) análise diagnóstica das consequências resultantes da lei vigente; (iii) aferição do atributo de validade da norma por seu grau de eficiência; e (iv) orientação objetiva do processo de decidibilidade judicial por meio de critérios racionais de tomada de decisão. Dada tal taxonomia, à análise econômica do direito pode ser atribuído o predicado de investigação zetética analítica aplicada[viii], à medida que busca adequar o fenômeno jurídico à lógica econômica.

Polêmica, a teoria econômica do direito[ix] é ainda vista com desconfiança. Talvez passasse ignorada se não fosse uma situação contingente deveras relevante: a incompetência estrutural do Poder Judiciário diante do aumento desenfreado da litigância. Daí por que a repristinação do duplo juízo de admissibilidade dos recursos excepcionais[x] tenha sido empreendida como instrumento de gestão para a redução do acervo processual dos tribunais superiores[xi]. No entanto, essa escolha supostamente irrefletida poderá surtir efeito reverso ao pretendido.

Nesse contexto, o primeiro ponto de destaque é o incentivo à litigância. Um dos fatores que influenciam a aposta do jurisdicionado na recorribilidade a todas as instâncias é a ampla liberdade de que dispõem os magistrados para decidir. Por óbvio, tal discricionariedade é fruto da evolução da ciência jurídica, que não mais concebe a figura do juiz como mero aplicador da lei, mas, sim, como o seu principal intérprete. Sob o prisma da atividade interpretativa, tampouco se admite o apego aos rígidos métodos interpretativos produzidos pelas escolas da exegese. Todavia, o relativismo exegético desvirtuou-se a ponto de criar um vazio metodológico que culminou na crença de que – a pretexto de se fazer justiça social – é permitido ao juiz extrapolar os seus limites de atuação. Sob a bênção da motivação, o que se vê é o completo abandono das técnicas hermenêuticas de aplicação do direito, transformando a livre convicção no critério essencial de julgamento. Num contexto em que as decisões judiciais são coloridas com as mais variadas convicções extrajurídicas, a uniformização da jurisprudência[xii] tornou-se um desafio. Não sem motivo, o litigante vê-se impulsionado a interpor o maior número de recursos possível porque a reversão de uma decisão indesejada é hipótese bastante provável[xiii].

Sensível a essa realidade, o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15) ampliou os horizontes processuais e criou, com inspiração nos países de tradição common law, um sistema de precedentes vinculantes. Decerto, não se pretendeu aqui transpor o direito brasileiro – tradicionalmente civilista – para o modelo consuetudinário. A razoabilidade crítica induz à corrente doutrinária que enxerga o sistema de precedentes como um subproduto normativo que dispõe sobre o ordenamento jurídico, razão por que vincularia apenas o Poder Judiciário. Infere-se daí a tentativa de implantar, posto que forçosamente, uma cultura de respeito às decisões proferidas pelos órgãos de segunda e de última instância.

Não obstante as mudanças incrementadas pelo novo Código para propiciar a almejada coerência sistemática, a preocupação com o aumento da litigância não se dissipou. Com o escopo de desafogar o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) da avalanche de recursos que os sufocam, a Lei nº 13.256/2016 alterou o CPC/15 para reestabelecer o juízo bipartido de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário[xiv]. Todavia, do resultado pretendido, vislumbra-se a seguinte consequência reversa: o espraiamento do espectro de provocação dos tribunais superiores.

O juízo de admissibilidade a quo do recurso especial ou do recurso extraordinário poderá ser positivo ou negativo. Sendo positivo, os autos serão remetidos ao respectivo tribunal superior, nos termos do inciso V do artigo 1.030 do CPC/15. Sendo negativo, dois serão os desfechos: (i) da decisão que não conhecer do recurso por não estarem presentes os requisitos de admissibilidade, caberá agravo ao STJ ou ao STF (CPC/15, art. 1.030, § 1º); (ii) da decisão que negar seguimento ao recurso com fundamento no inciso I do artigo 1.030 do CPC/15, caberá agravo interno (CPC/15, art. 1.030, § 2º). Neste caso, o desprovimento do agravo interno dará ensejo à reclamação ao STJ ou ao STF (CPC/15, art. 988, § 5º, II)[xv]; naquele, o tribunal ad quem se manifestará para dar ou para negar provimento ao agravo.

Como se vê, o STJ e o STF não deixarão de ser provocados. Pela perspectiva econômica, o direito tem a função de mudar o incentivo e, por via reflexa, moldar o comportamento[xvi]. A tentativa de corrigir o problema da litigiosidade sem investigar a sua gênese demonstra que o duplo juízo de admissibilidade dos recursos excepcionais não serve para esvaziar o acervo processual dos tribunais superiores. A medida legislativa que se imaginava eficiente mostrou-se inútil e potencialmente problemática. Além de contribuir para a morosidade do trâmite dos processos, criou embaraços ao acesso à justiça e trouxe prejuízos à celeridade[xvii].

Essas distorções reafirmam a conclusão de que a escolha legislativa não representa a solução mais benéfica para a sociedade. Ressaltam, com efeito, a necessidade de se proceder a exames de prognose a respeito das possíveis consequências de qualquer ato normativo. Com isso, dar-se-á vazão à função social do processo que, certamente, é o caminho mais auspicioso para efetivar-se o real sentido de devido processo legal.

[i] Conquanto a lei não seja a fonte exclusiva do direito brasileiro, deve-se ter em mente que nos países de direito escrito e deConstituiçãoo rígida vigora o primado da lei.

[ii] Embora seja tênue a linha que separa a zetética da dogmática, a diferença entre ambas consiste no propósito da investigação científica. Se se procura saber o que é algo, o enfoque zetético será acentuado; se se busca saber como deve ser algo, é o enfoque dogmático que será sobressaltado. Nesse sentido, p. Ex.: FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 8. Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 19.

[iii] Assim, p. Ex.: POSNER, Richard A. A economia da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 78-91.

[iv] MANKIW, N. Gregory. Introdução à economia. 5. Ed. São Paulo: Cengage Learning, 2009, p. 4.

[v] Os princípios de economia são explicados, p. Ex., por: MANKIW, N. Gregory. Op. Cit., p. 3-16.

[vi] Imagine-se que numa situação hipotética o contador de um escritório de contabilidade, que trabalha das 8h00 às 18h00, decida matricular-se num curso de extensão em economia no período entre 20h00 e 22h00. Ora, ao dedicar duas horas do seu tempo livre (recurso escasso) ao estudo da Economia, ele abre mão de assistir a um filme ou de desfrutar da companhia dos familiares [= tradeoff]. Sua decisão foi impulsionada após receber a notícia de que no escritório onde trabalha haverá uma promoção para o candidato que possuir curso de extensão em economia [= incentivo]. O desejo pela promoção, por sua vez, é resultado da atrativa remuneração prometida para o cargo almejado. Logo, o benefício proporcionado supera o sacrifício despendido [= relação custo-benefício positiva].

[vii] O benefício a terceiro pode dar-se simplesmente pela não piora do seu bem-estar.

[viii] Dentro de um contexto lógico dos sistemas normativos, a sobredita classificação, ainda que precária, serviria para explicar como os postulados econômicos se posicionariam idealmente no direito positivo. Nesse sentido, p. Ex.: FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Op. Cit., p. 24.

[ix] Nomenclatura modernamente empregada para designar análise econômica do direito. Nesse sentido, p. Ex.: POSNER, Richard A. Fronteiras da teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 3.

[x] A redação originária doCPC/20155 suplantara o duplo juízo de admissibilidade do sistema recursal. Porém, a Lei nº 13.256/2016, que modificou o novo Código antes mesmo de sua entrada em vigor, resgatou o juízo de admissibilidade a quo do CPC/1973 para reinstituí-lo no regime jurídico dos recursos especial e extraordinário.

[xi] Sobre a crise do Poder Judiciário e os imbróglios para filtrar o acesso à justiça, recomenda-se a leitura do texto intitulado STF e os filtros ao acesso à justiça, escrito pela professora Susana Henriques da Costa, disponível neste endereço eletrônico: http://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/337595507/stfeos-filtros-ao-acessoajustica.

[xii] O termo jurisprudência deve ser entendido em sua dupla acepção, que designa tanto Direito quanto decisões reiteradas de órgãos colegiados.

[xiii] Nesse sentido, p. Ex.: RODRIGUES, Filipe Azevedo; MOSSELINA, Maise Gindre. Análise econômica da crise do judiciário: o juízo de admissibilidade a quo como incentivo à litigância recursal. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=18fb150bb65a5825. Acessado em: 06 de junho de 2016.

[xiv] Dentre as modificações promovidas pela referida lei, a reintegração do duplo juízo de admissibilidade dos recursos excepcionais é uma das mais significativas.

[xv] Nesse sentido, p. Ex.: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13. Ed. Salvador: Juspodivm, 2016, v. 3, p. 317.

[xvi] Assim, p. Ex.: POSNER, Richard A. Op. Cit, p. 90.

[xvii] Nessa linha, p. Ex.: GICO JÚNIOR, Ivo. Introdução à análise econômica do direito. In: RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; KLEIN, Vinícius (coord.). O que é análise econômica do direito: uma introdução. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
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