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Vinculação do árbitro aos precedentes judiciais após a vigência do CPC/2015

Por:Marcela Kohlbach de Faria
Advogada, graduada em Direito, mestre e doutoranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ.


Como muito bem ressaltado por Carolina Uzeda Libardoni no texto publicado na segunda-feira passada (28.11.2016 veja aqui), se tem uma palavra que ganhou destaque com o início da vigência do CPC/2015, essa palavra é “precedente”. A dimensão da discussão em torno da adoção de um “sistema de precedentes” pelo CPC/2015 é tamanha que extrapolou os limites do diploma processual, atingindo os debates no âmbito da arbitragem, forma de heterocomposição no âmbito privado, que é regulada pela Lei 9.307/1996.

Isso porque a Lei 9.307/1996, em seu artigo 2º, afirma que a arbitragem poderá ser decidida com base na aplicação do direito ou de equidade, a critério das partes. Ou seja, as partes podem conferir aos árbitros a liberdade de julgar de acordo com seu senso de justiça ou restringir o poder decisório dos árbitros aos limites da lei e demais fontes de direito[1]. É justamente nesta última hipótese que reside a grande controvérsia.

Sem adentrar no espinhoso tema do conceito de precedente, fato é que o Código de Processo Civil ampliou o âmbito da vinculação das decisões judiciais, fazendo que todo o rol de decisões constantes no artigo 927 tenha força vinculante[2]. Assim, é inegável que, principalmente à luz do CPC/2015, o precedente constitui fonte de direito e vincula o juiz estatal.

Ora, se o precedente, especialmente o precedente vinculante, é fonte de direito, sendo o direito brasileiro aplicável à arbitragem, poderia o árbitro deixar de aplicar o precedente? Quais seriam as consequências para a não observância do precedente vinculante pelo árbitro?

Em artigo publicado recentemente, o tema foi abordado com presteza pelo professor José Rogério Cruz e Tucci[3], que ressaltou a necessidade de observância dos precedentes vinculantes pelo árbitro, a qual não decorre propriamente de autoridade hierárquica, porquanto inexiste qualquer interdependência entre tribunal estatal e árbitro, mas pela exigência de segurança jurídica. Em suas palavras:

Não tem sentido algum admitir que, de um lado, o juiz estatal encontre-se sujeito à incidência do precedente e, de outro, o árbitro esteja livre para afastar a sua observância. Quando nada, maculado estaria o princípio da isonomia, a desacreditar o juízo arbitral.

Para o autor, tendo em vista que a sentença arbitral é equiparada à sentença judicial[4] a regra do artigo 489, parágrafo 1º, inciso VI, do Código de Processo Civil[5], também se aplica à arbitragem e, portanto, caso o árbitro não se desincumba do ônus de justificar que a súmula ou o precedente invocado pela parte não tenha incidência na hipótese concreta ou tenha sido superado, a sentença será passível de controle pelo Poder Judiciário, mediante ação anulatória, já que formalmente viciada, por ausência de fundamentação. Não obstante, as ponderações do autor merecem ser analisadas com parcimônia e cautela, especialmente considerando as peculiaridades inerentes à arbitragem.

Inicialmente, manifesto o entendimento de que o Código de Processo Civil não se aplica à arbitragem[6], salvo se as partes assim convencionarem. Assim, todos os mecanismos e recursos previstos pelo Código de Processo Civil para a aplicação do precedente, como a tutela de evidência, a improcedência liminar, a reclamação, etc. Não são aplicáveis ao procedimento arbitral, ou mesmo em face de decisões arbitrais[7]. Ou seja, a sistemática procedimental trazida pelo diploma processual para o controle da aplicação dos precedentes vinculantes é de todo inaplicável à arbitragem.

Por outro lado, entendo que o precedente faz parte do ordenamento jurídico (como aliás já fazia, ainda que com menor força, antes do CPC/2015) e deve ser enfrentado pelo árbitro ou Tribunal Arbitral, assim como devem ser enfrentados todos os argumentos fáticos e jurídicos aduzidos pelas partes, já que a fundamentação é também requisito obrigatório da sentença arbitral na forma do artigo 26, inciso II[8].

No entanto, não me parece adequado o entendimento do professor Cruz e Tucci quanto à possibilidade de anulação da sentença arbitral caso o árbitro não se desincumba do ônus de justificar, na fundamentação de suas decisões, a não aplicação da súmula ou do precedente vinculante, seja ele invocado ou não pela parte[9], especialmente diante da impossibilidade da utilização da ação anulatória como instância revisora da sentença arbitral. Essa reflexão já foi objeto de análise por Andre Vasconcelos Roque e Fernando Fonseca Gajardoni, que destacam que:

“O art. 32, III da Lei nº 9.307/1996, segundo o qual é nula a sentença arbitral se não contiver os requisitos do art. 26 (entre os quais, a fundamentação), com todas as vênias, não nos parece que deva ser lido na extensão que lhe atribui Cruz e Tucci. Tal interpretação permitiria verdadeira revisão judicial da justiça da decisão proferida pelo árbitro – tudo o que se quis evitar na Lei nº 9.307/1996, quando se extinguiu a exigência de homologação judicial da sentença arbitral.”[10]

Veja que, se o árbitro deixar de aplicar ou aplicar incorretamente a lei brasileira, ressalvada a existência de outros vícios, a sentença não será passível de anulação, pois a interpretação da lei e a análise sobre a sua aplicação ao caso concreto faz parte da atividade julgadora. Portanto, o ajuizamento de ação anulatória por erro (ou ausência) de aplicação da lei constitui verdadeira tentativa de reforma do mérito da sentença arbitral, o que não se admite, por força do art. 33 da Lei de Arbitragem, que autoriza tão somente a declaração de nulidade da sentença arbitral, nas restritas hipóteses do artigo 32 da mesma lei.

Ainda que o árbitro tenha o dever de fundamentar a sentença arbitral, é importante observar que somente a completa ausência de fundamentação poderia dar ensejo à anulação da sentença arbitral, mas não a sua fundamentação deficiente ou incorreta. Conforme observa Carlos Alberto Carmona:

“Note-se que, mesmo em matéria arbitral, é importante o controle crítico que a motivação permite, não tanto sob o aspecto da impugnação da decisão (eis que já se sabe que tal controle é exercido – fora da esfera arbitral – apenas sob o aspecto formal), mas especialmente sob o ponto de vista da capacidade profissional do árbitro. Um laudo mal fundamentado, que revele graves equívocos dos julgadores na apreciação dos fatos, não será - ipso facto – sujeito à anulação; os árbitros que o proferirem, porém, provavelmente não serão chamados a participar de novos julgamentos (não só envolvendo as partes que os indicaram, mas possivelmente outras no meio em que aquelas atuam, ampliando-se consideravelmente o círculo se forem as partes atores do comércio internacional, onde uma performance desastrosa do árbitro encerra a sua ‘carreira’).” [11]

Ademais, conforme bem observado por Carolina Uzeda Libardoni[12], os precedentes adotados pelo sistema brasileiro são bem diferentes daqueles observados nos países de tradição de common law: “enquanto o precedente em países de common law é formado a posteriori, aqui, o art. 927 trouxe precedentes que são formados a partir de procedimentos específicos”. Ou seja, de certa forma pode-se dizer que o sistema de precedentes foi incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro para resolver o problema da grande quantidade de demandas repetitivas existentes e a necessidade de se criar um sistema que garanta a isonomia do julgamento dos casos idênticos e a efetividade/celeridade no julgamento de um grande número de casos.

Veja que a lógica do sistema de precedentes na forma adotada pelo sistema brasileiro não se aplica aos casos que usualmente são decididos por arbitragem. Principalmente pelo seu alto custo, a arbitragem é comumente utilizada para casos complexos, de alto valor e que demandam uma análise acurada e individualizada, distinguindo-se, assim, dos casos em que usualmente se aplicam os precedentes (teses) vinculantes[13].

Portanto, entendo que o Código de Processo Civil não trouxe nenhuma nova causa de anulação de sentença arbitral calcada na não observância do árbitro aos precedentes. De fato, assim como ocorre com a lei e outras fontes de direito adotadas pelo sistema jurídico pátrio, sendo a arbitragem de direito, cabe ao árbitro a observância dos precedentes e o enfrentamento dos argumentos fáticos e jurídicos aduzidos pelas partes. A despeito disso, a vinculação estabelecida pelo CPC/2015 para os precedentes elencados no rol do artigo 927, com todas as consequências previstas no diploma processual, é de todo inaplicável às decisões arbitrais.

Se por um lado não podemos afirmar que existem dois regimes jurídicos no plano material, um aplicável à arbitragem e outro às demandas judiciais, por outro lado, o controle da aplicação dos precedentes judiciais é muito mais rígido no sistema judicial, pela criação de mecanismos processuais previstos no Código de Processo Civil, que não podem ser aplicados às decisões arbitrais.

[1] Importante observar que o artigo2ºº, § 1ºº, da Lei9.3077/1996 dispõe que as partes poderão escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. Para fins deste texto, considera-se a aplicação do direito brasileiro.

[2] É pertinente a ponderação de Alexandre Câmara no sentido de que as súmulas não se enquadram no conceito de decisão, sendo tão somente um resumo da ratio decidendi. Assim, o enunciado de súmula não se enquadra no conceito de precedente, mas constitui um extrato da jurisprudência dominante de um Tribunal. CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro, 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2016, p. 431.

[3] http://www.conjur.com.br/2016-nov-01/paradoxo-corte-arbitro-observancia-precedente-judicial

[4] Na forma do artigo311 da Lei9.3077/1996: “A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo.”

[5]489. (...)

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...)

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

[6] Nesse ponto, entendo que a arbitragem constitui sistema próprio, na linha do que defende Eduardo Parente em sua tese de doutorado, que deu origem à obra intitulada: “Arbitragem e sistema”, São Paulo: Atlas, 2012. O sistema arbitral se comunica com o sistema processual, não obstante, a abertura cognitiva é inerente ao próprio conceito de sistema. Nas palavras do autor: “Sinteticamente, definimos abertura cognitiva como a capacidade de um sistema em se comunicar com outros, trocando mútuos influxos” (Op. Cit. P. 58). Assim, especificamente no que tange à relação da arbitragem com o direito processual, afirma o autor que: “Ao falarmos de comunicação, abertura cognitiva, do processo arbitral com o direito processual, deve sê-lo de forma ampla. Basicamente em dois sentidos: (a) o que vem do direito processual, suas normas e princípios; (b) o que vem do exercício da jurisdição estatal, as decisões do processo judicial”. (Op. Cit. P. 67).

[7] Neste sentido, vale a leitura de artigo escrito por Ricardo Aprigliano, afastando o cabimento de Conflito de Competência e de Mandado de Segurança contra as decisões arbitrais. Conforme bem aponta o autor: “Em relação à discussão sobre a natureza jurisdicional e as consequentes comparações entre a atividade do juiz e a do árbitro, a preocupação atual é a de evitar a incorporação ao processo arbitral de diversos institutos e técnicas processuais que só podem ter aplicação no âmbito do processo judicial, pois é para ele que aquelas regras foram concebidas, é na estrutura de uma estrutura judiciária que certos temas podem ter aplicação”. APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Jurisdição e Arbitragem no novo Código de Processo Civil, in A Reforma da Arbitragem. Coord, CAMPOS MELO, Leonardo de; BENEDUZI, Renato Resende. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 262.

[8] Art. 21. (...)

§ 2º Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.

[9] Aplica-se aqui o entendimento do autor no sentido de que, por força do iura novit cúria, mesmo que a tese jurisprudencial, embora relevante, não seja invocada ela parte interessada, a decisão desponta eivada de nulidade, se o juiz desprezá-la de forma injustificada. TUCCI, José Rogério Cruz e. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 485 ao 538. Coleção Comentários ao Código de Processo Civil; v. 8. Coordenação Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 112

[10]http://jota.info/colunas/novo-cpc/sentenca-arbitral-deve-seguiroprecedente-judicial-novo-cpc-07112...

[11] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 370.

[12] https://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/409536353/precedentes-breves-notas-sobre-vinculacao...

[13] Importante ressalvar hipóteses pontuais que podem ser objeto de tese vinculante fixada no judiciário, como a incidência de juros, prazo prescricional, natureza das obrigações, dentre outas.
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