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A concepção da urgência no Processo Civil Brasileiro

Por: Mirna Cianci
Mestre em Direito Processual Civil pela PUCSP. Procuradora do Estado. Coordenadora e Professora da área de Processo Civil da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual


Urgência é precisamente definida por De Plácido e Silva[1]: “Do latim urgentia, de urgere (urgir, estar iminente), exprime a qualidade do que é urgente, isto é, é premente, é imperioso, é de necessidade imediata, não deve ser protelado, sob pena de provocar, ou ocasionar um dano, ou um prejuízo. Assim, a urgência assinala o estado das coisas que se devam fazer imediatamente, por imperiosa necessidade, e para que se evitem males, ou perdas, conseqüentes de maiores delongas, ou protelações”.

O avanço da tecnologia apascentou a humanidade a um ritmo cuja celeridade concebe esse termo em lato sentido, de modo a ser considerado não só em razão da premência, mas em torno de um significado de maiores proporções, capaz de solucionar de plano situações tão somente pelo injustificado retardamento imposto pela máquina judiciária.

Mais modernamente, urgência revela a necessidade daquilo que não pode ser postergado em razão da evidência que não convive com o retardamento, o que torna indispensável a tutela jurídica para satisfazer situações que reclamam pronta atuação da jurisdição, para garantir efetividade de sua prestação.

A garantia de acesso à justiça, contemplada no art. 5º, inciso XXV e segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” compreende essa significação, revelando em seu espectro o direito de invocar a prestação jurisdicional qualificada como ordem jurídica justa e efetiva.

Kazuo Watanabe refere que o princípio da inafastabilidade do controle pelo poder judiciário traz ínsito no sentido do acesso formal aos órgãos do Poder Judiciário, ao mesmo tempo, a efetiva e tempestiva proteção contra qualquer forma de degeneração da justiça[2].

Estabelecida num juízo de proporcionalidade, a nova ordem processual compactua com o princípio da efetividade, de modo que o acesso à justiça não mais encontra satisfação no aspecto puramente formal, mas insere no sistema o direito de utilização de todos os meios instrumentais disponíveis e capazes de conferir verdadeira adequação da tutela jurisdicional, à sombra do direito material tutelado.

Nesse cenário, situa-se hoje o novo desenho do processo civil brasileiro, modernamente sintonizado com a utilidade, ciente de que o direito subjetivo pode sofrer volatização em razão do tempo, de que a celeridade fundada na razoável duração do processo, a simplificação dos procedimentos e a efetividade são coroas básicas[3].

Cumpre ao processo, em sua moderna acepção, servir ao papel instrumental, de modo a conferir o usufruto da justiça e do justo, aqui encarado como método de agilização da tutela jurisdicional, no sentido do que Cappelletti, muito oportuno, mencionou ao concluir que “o acesso formal, mas não efetivo à justiça, corresponde à igualdade apenas formal, mas não efetiva.” [4]

Esse padrão de destaque à celeridade da máquina judiciária não figura novidade no sistema processual brasileiro. O Código de Processo Civil historicamente sempre retratou hipóteses em cuja moldura coube a abrangência dessa concepção, ora em casos cuja demora tinha como resultado o ensejo à mais completa inutilidade da prestação jurisdicional, ora quando considerasse prioritário o gozo do direito, independente da demonstração de irreversibilidade.

A partir dessa formulação, o elemento urgência sempre foi considerado traço comum, capaz de imprimir cognição imediata, à margem da dilação probatória e dos demais trâmites subsequentes. A propósito, Donaldo Armelin[5] menciona que “a adoção da técnica de cognição sumária em processo autônomo, por inábil a gerar a certeza e segurança indispensáveis às soluções definitivas e de eficácia pan-processual, deve ater-se àquelas situações em que a urgência da tutela sobrepõe-se àquelas qualidades jurídicas”. Conclui a respeito que “a exigência de uma cognição plena não é por si só e sempre um empeço à celeridade da prestação jurisdicional”, cujo retardamento tem raízes outras e, por vezes acentuadamente determinantes de sua ocorrência”.

A urgência como sinônimo da possibilidade de dano irreparável, todavia, nem sempre tomou o sentido estrito do termo, abarcando o diploma processual situações como a prevista na concessão de liminares na tutela da posse nova, nos embargos de terceiro, na execução provisória e em medidas esparsas, nas quais a imediata percepção do direito reclama pressupostos específicos e a urgência decorre da importância que o legislador conferiu ao tema, numa seara que se resolve, portanto, em questão de política legislativa.

E não apenas no direito objetivo; também empiricamente verifica-se a concessão de medidas liminares sem a preocupação com a demonstração de urgência em sentido estrito, mas apenas diante da tutela de evidência, ainda que não tenha havido incontrovérsia ou abuso de direito.

Sua área de abrangência é definida não só pelo risco de dano em razão da ausência de fruição imediata do direito, ou risco à execução pelo comprometimento de suas bases materiais, mas, como bem demonstra Teori Albino Zavasky[6], pelo risco à regular prestação da tutela jurisdicional, pela indevida oposição de embaraços.

Sob esse pálio, o tempo pode causar efeitos deletérios ao consumidor da prestação jurisdicional em razão da inutilidade do provimento jurisdicional a ser emitido ao final do processo, pela irreversível consumação do mal temido. Ademais disso, a espera pela tutela jurisdicional pode prejudicar a disposição dos meios indispensáveis à correta realização do processo ou ao seu exercício útil. [7]

No segmento temporal entre a incoação da prestação jurisdicional e o seu desfecho, podem ainda ocorrer os denominados danos marginais do processo provocados à parte que tem razão, e que, não obstante a ausência de lesividade decorrente do periculum in mora, será obrigada a suportar o tempo para ver o seu direito satisfeito.[8] Como afirma Marinoni “quanto maior é a demora do processo, mais tempo o bem almejado é mantido no patrimônio do réu. Ou melhor, quanto maior for a demora no processo, maior será o dano imposto ao autor e, por consequência, maior o benefício conferido ao réu”.[9]

Para remediar esses danos marginais, o sistema processual prevê, dentre outras técnicas, a execução provisória, a tutela antecipada de evidência, a técnica monitória, etc. Todas traduzem hipóteses em que não há urgência em sentido estrito, mas urgência em larga concepção, aqui concebida como a inadmissibilidade de submeter ao tempo o gozo do direito, em situações legalmente previstas.

Esse assunto mereceu importante foco em alentado artigo, no qual Eduardo José da Fonseca Costa destaca capítulo onde examina de modo pragmático a concessão de medidas liminares “sem urgência”, concluindo que, não raro, são elas concedidas sem a presença da iminência de risco. Afirma o doutrinador que “o foco de atenção é atraído para o fumus boni iuris, como se o periculum in mora não fosse propriamente um requisito para a concessão de liminares”. Em seguida, detecta essa conduta numa atuação do Judiciário segundo uma “pauta ética”, no sentido de que o tempo deve atuar ao lado de quem demonstra a titularidade do direito ou revela, desde logo, a razão a seu lado[10].

Sob o crivo da efetividade, urgência, neste caso, serve ao direito evidente. O legislador “arrasta” para os direitos evidentes o regime jurídico da tutela de segurança, no sentido da “concessão de provimento imediato, satisfativo e realizador.”[11] Ou, ainda, abrevia o rito – e o decurso do tempo - para evitar a “lesão” ao direito evidente, como ocorre no mandado de segurança, na monitória, e na execução imediata.

Não resume-se a tanto o sentido político-abrangente do termo Urgência pretendido pelo legislador. O Código de Processo Civil (art. 332) prevê que a ação manifestamente improcedente merecerá julgamento de plano, independente da triangularização da relação jurídico-processual; o artigo 943 do CPC, que manteve a ampliação dos poderes do relator, de modo a permitir o imediato julgamento do recurso manifestamente improcedente, de modo que a atuação singular e à margem da pauta do Colegiado possam conferir maior celeridade na decisão sobre tema que não mereça delongas, porque antevista a sorte da pretensão deduzida. O julgamento de processos repetitivos (CPC, art. 1036) e bem assim a exigência de repercussão geral para a submissão dos recursos à Alta Corte (Emenda Constitucional 45/2004 (art. 102, parágrafo 3º), da mesma forma, são medidas de reforma que prestigiaram a necessidade de urgência da jurisdição que resulta do desafogo da máquina judiciária. No plano da execução, foi afastada a suspensividade da defesa (embargos - CPC, art. 919 - ou a impugnação – CPC, art. 525, 6º) sempre que não evidenciado, de plano, o direito objeto de inconformismo, privilegiando a certeza que se supõe a favor do título executivo, em detrimento da morosidade causada pelos embaraços revelados, não raro, pelo ardil utilizado sob o amparo da ultrapassada técnica.

O regime de tutelas diferenciadas, nomenclatura de lavra de Proto Pisani[12], revelou essa preocupação de adequação do papel instrumental do processo, com a necessidade da adoção de uma sorte de mecanismos diversos, cada um trazendo em si as especificidades necessárias para melhor atendimento à questão de direito material. Ovídio Baptista traduz Carnellutti que preconizava “a construção de um processo a struttura elástica, ao colocar em dúvida a utilidade de tratamento uniforme a processos de dimensão e estrutura diferenciada.[13]

Significa admitir que a cognição poderá também dar a medida da urgência do processo, posto que o portador, e. G., de um direito líquido e certo pode dispor do mandado de segurança, de rito célere, de modo a obviar o gozo do direito evidente, à margem da ordinariedade. Neste caso, urgência conclama a mera abreviação de rito, sem sacrifício da verticalidade da cognição, dando vigor aos denominados “juízos plenários rápidos”[14]

A mesma evidência, que antes fundamentava a tutela antecipada de pedido incontroverso, [15] a qual privilegia a celeridade, e não o risco de dano, hoje permite o julgamento parcial. Trata-se de uma parte do pedido cumulado que, pela sua evidência, está em condições de julgamento, o que autoriza o julgamento antecipado. Em tais casos, como observa Marinoni, “seria injusto obrigar o autor a esperar a realização de um direito que não se mostra mais controvertido.”[16]

A evidência, aqui, labora em favor da correta distribuição do tempo no processo entre as partes, sem suprimir, no entanto, o direito de defesa. O mesmo se dá com a execução provisória. Para dimensionar o tempo no processo, e assim garantir a desejada efetividade da prestação jurisdicional, o legislador conferiu execução imediata à sentença sujeita a recurso sem efeito suspensivo, priorizando, com isso, o autor, que a princípio tem razão, laborando a seu favor a evidência, legalmente categorizada como situação de urgência[17].

Ao admitir a execução imediata da sentença, o legislador não objetivou, propriamente, evitar o perigo de retardamento da prestação jurisdicional, em razão de possíveis riscos de dano. A execução imediata, ausente a suspensividade da apelação, se instaura ope legis, a requerimento do credor, independentemente de demonstração de periculum in mora.

Nada mais representam essas técnicas senão a justa adaptação da forma à substância, na medida exata, sob o molde dos meios processuais adequados à tutela jurisdicional, perspectiva na qual caberá maior ou menor celeridade do processo, tal qual o legislador tenha considerado dentro de um contexto histórico-axiológico.

Esse panorama que se descortina no processo civil resulta de um poder reformador, inquietação que supera fronteiras, como na lição de Owen Fiss, ao retratar “Um Novo Processo Civil”[18], resultando de toda a sua obra a preocupação com a modernidade adaptada.

Nesse espectro, revela-se que as situações de emergência resultam não do perigo na demora, mas da importância que toma o princípio da efetividade no processo civil, hábil a convolar em urgência situação que não justifica a postergação da fruição.

Evidenciado o direito, seja pela atitude do réu, seja pela incontrovérsia, ou pela decisão de primeiro grau favorável, desaparece motivo para a espera. Em outras hipóteses, pela natureza do direito (posse nova; higidez do título, etc.), também conferiu o legislador ao jurisdicionado a maior celeridade no trato da questão submissa ao poder jurisdicional.

Em tais casos, haverá premência no gozo do direito, não pelo perigo ou pela irreversibilidade, revelando-se a urgência por equiparação legal. Será então viabilizada a imediata fruição do direito, ou porque permitida a execução provisória, ou ainda porque concedido o direito por força da simples evidência, ou em casos outros, assim considerada a tutela de urgência em sentido lato.

Acrescente-se a tudo o que foi aqui dito – e sob a forma de coroa -, que o legislador constitucional expressamente equiparou a razoável duração do processo aos meios processuais capazes de conferir celeridade aos ritos (art. 5º, inciso LXXVIII), de sorte que todos os tipos de abreviação previstos no diploma processual (tutela antecipada, cautelar, execução provisória, etc.) são considerados técnicas de aceleração e, portanto, traduzem a urgência reclamada pela Carta Magna, na consecução desse princípio. São, portanto e como dito alhures, casos de urgência por equiparação legal, urgência ínsita.

Em conclusão, não deixa de ser requisito a necessidade de demonstração da emergência como pressuposto para a aceleração do processo, apenas e tão somente o detentor do direito deverá demonstrar a subsunção da pretensão ao conceito de Urgência em sentido lato (ou por equiparação legal), capaz de dar albergue a situações que retratem a efetividade consagrada pela norma constitucional.

[1] Vocabulário jurídico, v. IV. Forense: Rio de Janeiro, 1980, p. 1.611.

[2] WATANABE, Kazuo. Tutela antecipatória e tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 20.

[3] Trecho de nosso As principais reformas do processo civil brasileiro (sob o enfoque do acesso à justiça). São Paulo: Saraiva, no prelo.

[4] CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryan, Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 09.

[5] Tutela jurisdicional diferenciada. Revista de Processo, v. 65. São Paulo, 1992, p. 52.

[6] Antecipação da tutela. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 30.

[7] Cf. Cândido Rangel Dinamarco. O regime jurídico das medidas urgentes. Nova era do processo civil. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 32.

[8] Ver a respeito Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes. Tutela antecipada sancionatória. São Paulo: Malheiros, p. 61-63

[9] Abuso de defesa e parte incontroversa da demanda. São Paulo: RT, 2007, p. 18.

[10] Revista de Processo, n.140, outubro de 2006. São Paulo: RT, p. 12-13.

[11] Cf. Luiz Fux. Tutela de segurança e tutela da evidência. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 309.

[12] Andrea Proto Pisani, Sulla tutela giurisdizionale differenziata. Rivista di Diritto Processuale, Pádua: Cedam, 1979, p. 537.

[13] O Processo Civil e sua recente reforma. In: wambier, Teresa arruda Alvim (coord). Aspectos Polêmicos da Antecipação de Tutela. São Paulo: RT, 1997, p. 414. Segundo Carnellutti “come Il più intenso dei miei sforzi sai stato quelo di adeguare, per quanto è possibile, La struttura dele processo a quella della lite, costruendo, per cosi dire, um processo ‘a struttura elástica” (mirna, falta citação).

[14] Cf. Luiz Orione Neto, Tratado das medidas cautelares, op. Cit., p. 212.

[15]CPCC/73 - Art. 2733, § 6ºº: “A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso”.

[16] Tutela antecipatória e julgamento antecipado. Parte incontroversa da demanda. 5. Ed. São Paulo, RT, 2002, p. 178-179.

[17] Cf. A respeito, as oportunas considerações de Marinoni, Tutela antecipatória e julgamento antecipado. Parte incontroversa da demanda. Ob. Cit., p. 178-179. Segundo o autor, a distribuição do tempo no processo sempre pode impor uma situação de risco às partes. Porém, “se o autor é prejudicado pelo tempo do primeiro grau, não há motivo plausível para o sistema prejudicá-lo ainda mais, desconsiderando a necessidade de execução imediata da sentença [...]. Mais adiante refere que “o recurso, na hipótese de sentença de procedência, serve unicamente para o réu tentar demonstrar o desacerto da tarefa do juiz. Assim, por lógica, é o réu, e não o autor, aquele que deve suportar o tempo do recurso interposto contra a sentença de procedência. Se o recurso interessa apenas ao réu, não é possível que o autor – que já teve o seu direito declarado – continue sofrendo os males da lentidão da justiça”. (Tutela antecipatória e julgamento antecipado. Parte incontroversa da demanda, ob. Cit., p. 179)

[18] Um novo processo civil. São Paulo: RT 2004, passim.
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