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A Fazenda Pública e a estabilização da tutela antecipada antecedente

Por: Janaína Soares Noleto Castelo Branco
Mestre e doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará - UFC, Professora Assistente de Processo Civil da UFC, Coordenadora do Grupo de Estudos em Direito Processual Civil da UFC, membro da Academia Brasileira de Direito Processual - ABDPro, Procuradora federal.


O CPC/15 inovou com a possibilidade de estabilização da tutela antecipada (desde que requerida em caráter antecedente), caso a parte ré não interponha o recurso cabível (artigo 304, caput, do CPC/15). Não impugnada a decisão concessiva da tutela antecipada antecedente, o juiz extinguirá o processo (artigo 304, § 1º), tendo ambas as partes o prazo de dois anos para a propositura de ação que vise à revisão, reforma ou invalidação da medida estabilizada (artigo 304, §§ 2º e 5º). Não há possibilidade de estabilização da tutela cautelar antecedente. Apenas a tutela antecipada, porque satisfativa, tem o condão de estabilizar quando concedida em procedimento específico e sem impugnação.

No que diz respeito à Fazenda Pública, surgem três questões, sendo que a primeira é prejudicial à segunda: 1. Aplica-se ao ente público réu a estabilização na hipótese de decisão concessiva de tutela antecipada antecedente não recorrida?; 2. Há necessidade de remessa necessária como condição para a estabilização?; 3. A estabilização é compatível com o sistema dos Juizados, em especial os da Fazenda Pública?

Argumento forte para a defesa da inaplicabilidade da estabilização à Fazenda Pública seria a impossibilidade de imposição do efeito material da revelia quando são indisponíveis os interesses (art. 345, II, CPC/15). Em geral, são indisponíveis os interesses do ente público. Mesmo não sendo o recurso uma contestação (revelia é ausência de contestação), é mister reconhecer que o efeito da ausência de recurso na hipótese de concessão de tutela antecipada antecedente (estabilização) é até mais grave que o efeito da ausência de contestação (presunção de veracidade dos fatos narrados pela parte autora). Nessa perspectiva, não seriam estabilizáveis as decisões contrárias ao poder público que concedessem tutela antecipada antecedente.

Ocorre que, numa interpretação sistemática do código, é possível extrair-se a possibilidade de aplicação das técnicas de monitorização[i] do processo contra o poder público. Tornando letra de lei o que já estava sumulado (Súmula 339 do Superior Tribunal de Justiça), o CPC/15 expressamente prevê a possibilidade de ação monitória em face do ente público (artigo 701, § 4º, do CPC/15). Lá, a ausência de manifestação (embargos) da Fazenda conduz à imediata formação do título judicial, consequência indiscutivelmente mais grave que a estabilização prevista no art. 304. É bem verdade que lá, ao determinar a expedição do mandado monitório, o juiz está respaldado num “quase título” (documento escrito comprobatório da dívida), constituindo a medida uma tutela da evidência. Na concessão da tutela antecipada, por outro lado, não é necessário que haja evidência, bastando a mera aparência. Essa constatação não serviria, todavia, para infirmar a conclusão de que é possível a estabilização contra a Fazenda Pública. É que, enquanto, na ação monitória, o “quase título” respalda a grave consequência da formação do título executivo judicial; no novel procedimento da tutela antecedente, a mera fumaça do bom direito respalda algo bem menos grave, que seria a mera estabilização. Bem menos grave porque facilmente reversível. Para ser realmente grave a estabilização, seria necessário que a Fazenda Pública, além de não recorrer da decisão, se mantivesse inerte por dois anos, prazo legal para desestabilizar a medida. Então, o que gera o grave efeito da “estabilização eterna” não é a ausência do recurso, mas a inércia da Fazenda nos dois anos seguintes à prolação da sentença de extinção do processo (art. 304, § 5º, CPC).

Enfim, pode-se concluir que as técnicas de monitorização do procedimento aplicam-se à Fazenda Pública, sendo que, na ação monitória (tutela da evidência) o sistema tolera a imediata formação do título judicial, enquanto admitiria a mera estabilização no caso de simples aparência somada a urgência (tutela de urgência). Passa-se então ao segundo questionamento: aplica-se a remessa necessária na hipótese de decisão concessiva de tutela antecipada antecedente não recorrida contra a Fazenda Pública?

A estabilização torna consolidada uma situação desfavorável à Fazenda Pública e, passados os dois anos para a desestabilização, a situação equipara-se a uma coisa julgada[ii]. A dispensar-se a remessa necessária, estar-se-ia diante de decisão contrária à Fazenda com força equivalente à de uma sentença transitada em julgado sem que tivesse havido confirmação da mesma pelo tribunal de apelação, como ocorre com as sentenças ordinariamente. Ademais, mais uma vez buscando auxílio no regramento da ação monitória (art. 701, § 4º), lá o legislador não dispensou a aplicação do art. 496 do CPC/15[iii].

Portanto, impõe-se o regime da remessa necessária a tal situação, restando delimitar em que momento a mesma ocorreria e qual ato judicial constituiria seu objeto. O ato a ser submetido à remessa seria a decisão interlocutória concessiva da tutela antecipada ou a sentença de extinção do processo?

A sentença de extinção do processo, no caso de ter havido estabilização, não se limita a declarar o processo extinto, mas prenuncia a estabilização da medida. Portanto, seria este o ato judicial sujeito à remessa necessária. Ademais, a remessa necessária é mister nas sentenças proferidas contra a Fazenda Pública (artigo 496 do CPC/15), sendo exatamente o caso da sentença que prenuncia estabilização de tutela antecipada antecedente. Ao declarar a estabilização, está o juiz a prolatar sentença contrária ao ente público. Apesar de não se tratar de sentença condenatória, tem conteúdo declaratório da estabilização, devendo, portanto, ser confirmada pelo tribunal[iv].

Obviamente, o que se analisará na remessa necessária não é a possibilidade abstrata de estabilização, que aqui já foi defendida. É a possibilidade concreta de estabilização, o que leva inevitavelmente à revisão do conteúdo da decisão interlocutória concessiva da tutela de urgência. Então, embora o objeto da remessa seja a sentença de extinção do processo, tendo em vista seu conteúdo de declaração da estabilização, a mesma não pode ser analisada senão em conjunto com a decisão concessiva da tutela antecipada. É o acerto de tal decisão que será objeto de revisão e eventual confirmação. Se o tribunal concluir por não confirmar a sentença, estará também revogando a tutela concedida e determinando que o processo continue a correr. Não se trata de desrespeito à preclusão da decisão não recorrida por agravo de instrumento. A sentença tratou expressamente da matéria proferida na interlocutória. Aliás, foi proferida exclusivamente para tratar dela, para declará-la estável. E não se pode negar que a reforma de sentença que confirme - ou declare estabilizada - tutela de urgência tem impacto direto sobre a medida. O tribunal estará, portanto, cancelando a sentença e seu conteúdo declaratório da estabilização, e reformando, por consequência, a decisão interlocutória.

Quanto à questão no início colocada acerca do cabimento ou não do procedimento da tutela de urgência antecedente nos Juizados Especiais, em especial nos da Fazenda Pública (Leis nºs 10.259/2001 e 12.153/2009), não se vislumbra qualquer impossibilidade de, em situação de urgência contemporânea à propositura da ação, a parte autora requerer num primeiro momento somente a tutela de urgência no procedimento dos Juizados Especiais, oferecendo posteriormente o pedido de tutela final. Não há incompatibilidade entre os procedimentos. Há sim a inclusão de novo mini procedimento não previsto na legislação específica, mas isso não é suficiente para afastar sua aplicação aos Juizados Especiais. É que as regras ampliativas da concessão de tutelas de urgência podem e devem abranger procedimentos regulados em legislação extravagante, por constituírem ampliação do acesso à justiça e mecanismo de fortalecimento da efetividade da prestação jurisdicional.

Concluir que é possível requerer de forma antecedente a tutela de urgência (cautelar ou antecipada) no procedimento dos Juizados Especiais não equivale a admitir a estabilização da tutela antecipada antecedente. Nos Juizados Cíveis regulados pela Lei nº 9.099/95, a estabilização não é possível, em virtude da inexistência de recurso contra decisões interlocutórias. Com efeito, somente há previsão de recurso contra sentença (artigo 41, caput), sendo irrecorríveis as interlocutórias. E, como visto, somente a interposição do recurso cabível contra a decisão de concessão da tutela antecipada antecedente impede a estabilização. Ora, se não há recurso no procedimento dos juizados contra essas decisões, não há estabilização.

Contudo, nos Juizados Especiais da Fazenda Pública há sim recurso contra decisões concessivas de tutela de urgência (artigo 5º da Lei nº 10.259/01 e artigo 4º da Lei 12.153/09). Tal especificidade poderia levar à conclusão de que em tais juizados seria possível a estabilização da tutela antecipada antecedente. Mas não é bem assim. E aqui não vai qualquer defesa de mais uma prerrogativa para a Fazenda Pública. Explica-se.

A introdução da estabilização da tutela antecipada antecedente no sistema pátrio fez-se acompanhar de mecanismo de “desestabilização”, que consiste em ação judicial a ser proposta em prazo decadencial bienal no mesmo juízo competente para a ação originária (artigo 304, §§ 2º e 5º, do CPC/15). Ocorre que essa ação não poderia ser proposta pela Fazenda Pública e empresas públicas no procedimento dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, tendo em vista que tais entes, pelas leis que regulam esses Juizados, não podem ser autores no procedimento sumaríssimo (artigo 6º da Lei nº 10.259/01 e art. 5º da Lei nº 12.153/09). Com efeito, somente podem ocupar o polo passivo no sumaríssimo. Ora, se não podem propor ações nos Juizados, nada poderiam fazer contra uma eventual estabilização da tutela antecipada antecedente. Estariam despidos da ação que visa à revisão da estabilização. Isso ocasionaria uma situação de total desigualdade e disparidade de armas, na medida em que a parte autora disporia de ação não disponibilizada ao réu. Eis a única razão para que, apesar de admitir-se nos Juizados Especiais da Fazenda Pública o pedido de concessão de tutela antecipada antecedente, não se admitir sua estabilização.

[i] Seriam técnicas de monitorização do procedimento aquelas que viabilizam rapidamente ao jurisdicionado resultados práticos quando, em cognição sumária, há evidência do direito do autor aliada à inércia do réu. Além da ação monitória, podem-se citar como exemplos a tutela da evidência prevista no art. 311, I e IV, e a estabilização da tutela antecipada.

[ii] Apesar de expressa previsão legal de não formação de coisa julgada - art. 3044, § 6oo, CPCC -, o próprio legislador ressaltou que somente por meio da ação prevista no§ 2ºº seria possível afastar a decisão estabilizada, o que equivale a conferir-lhe imutabilidade semelhante à da coisa julgada após o prazo de 2 anos para propositura da referida ação. Não é, todavia, questão pacífica, a da natureza da preclusão introduzida recentemente no sistema pátrio.

[iii] De ressaltar-se o entendimento de Leonardo da Cunha no sentido de que a remessa necessária é imprescindível para que se forme coisa julgada contra a Fazenda Pública, não sendo este o caso da estabilização da decisão que concede tutela de urgência. Ademais, tais decisões não ensejam expedição de precatório. CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 13 ed., São Paulo: Forense, 2016, p. 316).

[iv] No mesmo sentido, Marco Antonio Rodrigues. De ressalvar-se que o autor defende primeiramente a inaplicabilidade da estabilização à Fazenda Pública, tendo em vista que a estabilização equivaleria a admitir indiretamente a produção de efeitos de veracidade às afirmações do autor (produção do efeito material da revelia), em clara ofensa ao artigo 345, II, do CPC (RODRIGUES, Marco Antonio. A Fazenda Pública no Processo Civil. 2 ed. Rev. Atual. E ampl., São Paulo: Atlas, 2016, p. 109-111).
p. 76-77.
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