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A Jurisdição Brasileira no Estado Democrático de Direito e o Pluralismo Participativo

Por: Mônica Pimenta Júdice
Mestre em Direito Processual Civil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). LLM em Direito Marítimo pela Universidade de Oslo – Noruega (UIO). Pós Graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Membro da Associação Brasileira de Direito Marítimo (ABDM). Membro do Instituto Panamericano de Direito Processual Civil (IPDP). Parecerista da Revista Brasileira de Direito Processual Civil (RBDPro). Advogada e Professora.


A atividade jurisdicional encontrou durante muito tempo sua justificativa na evolução social e política da comunidade humana, que, ao exigir um incremento da segurança de seus membros, conduziu à substituição da justiça privada, por uma atuação exclusiva do próprio Estado como ente imparcial a quem se atribui a função de pacificação dos conflitos sociais, por meio da recomposição ou imposição do comportamento preceituado por normas legais de conduta por ele próprio ditadas[1].

Em outras palavras, a jurisdição é a forma pela qual o poder estatal atuaria para corrigir a não observância espontânea do comando legal. Ainda, é a forma como o Estado substitui a vontade dos “súditos” para determinar a devida e concreta atuação do ditame legal no âmbito de conflitos interindividuais ou supraindividuais[2].

É visível que não há ainda na doutrina pátria um consenso no tocante ao conceito de jurisdição, o que torna impraticável apresentar todas as teorias sobre o tema. Não obstante, apresentar-se-ão aquelas mais relevantes no cenário nacional – a exemplo da teoria de Chiovenda e de Carnelutti –, sendo essas as mais aceitas pelos doutrinadores brasileiros, embora alguns as considerem antagônicas[3]; TODAVIA, de acordo com a corrente majoritária, as teorias são, na verdade, complementares, na medida jurisdição é “função do Estado de atuar a vontade concreta da lei com o fim de obter a justa composição da lide”[4] – o que não parece adequado, senão vejamos.

Para Giuseppe Chiovenda, pode-se definir jurisdição como a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva[5]. A teoria chiovendiana tem por escopo que a lei regularia todas as situações de um caso concreto, devendo o Estado limitar-se à atuação da vontade concreta da lei – de modo que bastavam a declaração do direito e a atuação prática da lei.

A outra concepção é a de Francesco Carnelutti, que relaciona o conceito de jurisdição com a “justa composição da lide”[6]. Por meio da manifestação do magistrado, de caráter imperativo, o processo equivaleria ao instrumento público para a justa composição da lide[7]. Assim é que o conceito carnelutiano de lide – ampliado para possibilitar a abrangência de interesses coletivos e interesses de ordem pública[8] – apresenta-se como ideia inseparável da jurisdição, na medida em que jurisdição assumiria uma função exclusiva de composição de lide.

É de se registrar que enquanto na primeira teoria, também conhecida como teoria declaratória ou dualista[9], a atividade jurisdicional limitar-se-ia ao reconhecimento de direito preexistente, nesta última, denominada também de teoria constitutiva ou unitária, a função jurisdicional criaria o próprio direito substancial, nascendo, portanto, em conjunto com a norma de incidência, a composição do litígio.

Cumpre registrar, nessa toada, o conceito de jurisdição de Enrico Tulio Liebman, que se baseou exatamente na junção de ambas as teorias italianas. Para ele – que influenciou diretamente o Código de Processo Civil – CPC/73, é atividade estatal destinada a atuar na regra jurídica concreta que disciplina a situação jurídica[10]. Assim, ainda hodiernamente, em muitas vezes, a doutrina e a práxis – sem se atentarem para a evolução semântica por que foram passando ao longo do tempo – ainda se deixam influenciar por esse conceito clássico e de raízes antagônicas, mesmo diante das profundas modificações sociopolítico-econômicas que o direito contemporâneo ultrapassou com o Estado Democrático de Direito (EDD).

É possível vislumbrar que as teorias acima retratadas partem de uma proeminência – ou do direito material ou do direito processual – que, data maxima venia, não condiz mais com o paradigma pós-positivista do Estado Democrático de Direito[11], uma vez que o direito e a norma são um produto de linguagem, isto é, são o produto da interpretação do operador do direito na solução do caso concreto.

Como se vê, o acesso hermenêutico ao processo implica a superação da polêmica dicotomia entre monismo e dualismo, a uma, porque i) não existe separação entre direito processual e direito material, constituindo, ambos, enunciados normativos; a duas, porque ii) não há mais como conceber atualmente a sentença como um mero ato de silogismo; e a três, porque iii) a decisão judicial não é fonte única criadora de direito (a despeito de ser a mais relevante), razão pela qual não se adota aqui aquelas construções históricas de atividade jurisdicional.

Diante disso, o conceito de jurisdição refletirá a própria essência da atividade judicante – qual seja: todo poder ou autoridade conferidos por lei em sentido estrito a um agente, órgão ou instância, em virtude dos quais se atribuirá sentido à norma diante da problematização do caso concreto, prevenindo-o ou solucionando-o. Supera-se, assim, a metodologia positivista de que a decisão judicial é um ato de mero silogismo (onde, texto e norma se confundem), que persiste em separar o fenômeno da compreensão, da interpretação e da aplicação do direito.

Partindo-se da premissa, cumpre elucidar o sentido atual do monopólio estatal na distribuição da justiça e jurisdição unitária, a fim de acolher a ideia de que agentes, órgãos ou instâncias externos à estrutura judiciária participem efetivamente do exercício da jurisdição, sem que isso seja considerado uma inconstitucionalidade, em desrespeito ao art. 5º, XXXV (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), da Constituição Federal/88.

De fato, a usual colagem entre as expressões monopólio estatal na distribuição da justiça e jurisdição unitária, em face do que se contém no art. 5º, XXXV, da CF/88 (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), tem engendrado exegeses as mais dispares, o que tem repercutido negativamente na apreensão do sentido atual de conceitos importantes, como os de jurisdição, direito de ação, função judicial do Estado e até mesmo de relação jurídica processual[12].

É de se notar que há outros órgãos com tendência à desjudicialização dos conflitos, a exemplo dos Tribunais Desportivos (CF, art. 217), os Tabelionatos (CPC, art. 982, 1124-A, cf. Lei n. 11.441/07), as Comissões de Conciliação Prévia na Justiça do Trabalho (CLT, art. 625-D, cf. Lei n. 9958/2000), o Tribunal Marítimo (art. 1º da Lei n. 2180/54), as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) (art. 58, da CF/88), os Crimes de Responsabilidade (art. 86, da CF/88), o Tribunal de Contas (art. 71, II da CF/88), o Cade (art. 7º da Lei n. 12.529/11), que desempenham funções atípicas ou equivalentes àquelas jurisdicionais, ou ainda, jurisdição anômala[13].

Veja-se que a vinculação do conceito de jurisdição a uma atividade estatal não é requisito intrínseco para caracterizar essa atividade[14].

É nessa esteira que se vêm consolidando, inclusive, os mais modernos sistemas jurídicos, dentre eles, o do Novo Código de Processo Civil (CPC/15), que tem como diretriz principal a composição justa dos conflitos, e as Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[15], que incluem o direito à ordem jurídica justa.

Vale aqui relembrar a terceira onda “um novo enfoque de acesso à justiça”, de Mauro Cappelletti[16]. Não basta apenas o acesso à tutela jurisdicional, mas também um acesso realmente efetivo aos órgãos jurisdicionais. O novo enfoque do acesso anima uma ampla variedade de reformas – a exemplo da alteração nas formas de procedimento e na estrutura dos tribunais ou, mesmo, na criação de novos tribunais; o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores; codificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução; e a utilização de mecanismos privados de solução dos litígios[17].

É como registra Rodolfo de Camargo Mancuso[18]: “O Brasil é país de jurisdição una, não no sentido de que a distribuição da justiça – solução equânime consistente e tempestiva dos conflitos – só possa fazer-se por meio dos órgãos propriamente jurisdicionais, e sim ao pressuposto de se aceitar que aquela unidade não pode ser tomada ao pé da letra, mas deve consentir refrações ou temperamentos”, que complementa, tais os que se seguem:

i) Decisões tomadas por instâncias diversas, singulares ou colegiadas fora do rol constante do art. 92, sujeitam-se ao crivo jurisdicional, entendendo-se, porém, que alguma vez essa subsunção depende do prévio atendimento de certos quesitos prévios (v. G. Conflitos desportivos) e tendo-se ainda presente que essa possível revisão judicial não assegura que a decisão sindicada venha a ser alterada, podendo, antes vir a ser considerada tecnicamente hígida, e como tal mantida, como pode dar-se com uma sentença arbitral infundadamente increpada de nulidade;

ii) O acesso à justiça estatal, ao contrário do que uma leitura desavisada ou empolgada possa sugerir, não se reveste de nenhuma obrigatoriedade, mas antes deve ser revista sob um registro residual, reservada para as ocorrências que se revelem incompossíveis por outros modos – seja por singularidade de matéria ou de pessoa ou porque se frustraram os outros meios auto e heterocompositivos intentados – com o que podem ser alcançado as relevantes externalidades positivas: estimula-se a vera cidadania, aderente ao pluralismo participativo, dá-se ensejo a que a controvérsia alcance um desejável ponto de maturação, previne-se a banalização da função judiciária estatal, como ocorre com a chamada judicialização do cotidiano,

iii) A unidade da jurisdição estatal, sobre não significar que só o estado concentra a função de distribuir justiça, em verdade apenas se prende ao fato de que dentre nós não se implementou o contencioso administrativo.

No limite do direito constitucional contemporâneo faz-se urgente uma destemida renovação na estrutura judiciária brasileira, por meio de uma MUDANÇA DE PARADIGMA, para permitir nova condição legitimante de jurisdição[19], desconectada de qualquer vestígio que implique o monopólio, mas que, ao invés, incentive o concurso de outros agentes, órgãos ou instâncias de composição da lide de forma mais equânime, consistente e tempestiva, acabando de vez com aquela ideia ortodoxa de que só possa fazer-se por meio dos órgãos propriamente jurisdicionais, em que se toma ao pé da letra o princípio do acesso à justiça (CF/88, art. 5º, XXXV), sem refrações ou qualquer tipo de temperamento sobre ele.

Nesse sentido, avançou o novo códex.

[1] CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 6aEd. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 15.

[2] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 9aEd. São Paulo: Malheiros, p. 113.

[3] Cândido Rangel Dinamarco assim se posiciona: “(...) por esta razão parece correto o entendimento segundo o qual as concepções de Chiovenda e Carnelutti acerca da jurisdição são antagônicas e, por tal motivo, entendo que deve o jurista optar por uma delas (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, in CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 80).

[4] É verdade que, com esse objetivo, atuando a lei no caso concreto, impondo assim a autoridade desta, o Estado reconhece deliberação quanto ao direito subjetivo, como consequência daquela atuação. Em conclusão, a finalidade da jurisdição é resguardar a ordem jurídica, o império da lei e, como consequência, proteger aquele dos interesses em conflito que é tutelado pela lei, ou seja, aparar o direito objetivo. In: SANTOS, Moacir Amaral. Primeiras linhas de Direito Processual Civil. 18a Ed. São Paulo: Saraiva, 1995, vol. 1, p. 68. Também nesse sentido: GRECO FILHO, Direito Processual Civil Brasileiro, 11aEd. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 167; AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 13aed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 67. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 6aed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 37.

[5]CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 3aed. Trad. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 3.

[6] CARNELUTTI, Francesco. Estudios de Derecho Procesal. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: EJEA, 1971, p. 5.

[7] Daí, exsurge o conflito dos intereses quando la situacion favorable a la satisfaccion de una necesidad distinta, configurando-se a lide quando ocorre o confronto entre intereses de dos personas distintas. E adiante explicita “lhamo litigio al conflicto de intereses calificados por la pretension de uno de los interesados y por la resistência del otro”. In: CARNELUTTI, Francesco. Derecho y Proceso. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: EJEA, 1971, p. 62.

[8] Galeno Lacerda, Comentários aoCPCC, 7aed. Forense, 1998, v. VIII, t. 1, n, 6, p. 15.

[9] Aponta Alexandre Freitas Câmara que a teoria dominante na doutrina seria a declaratória ou dualista, in Lições de Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 80.

[10] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Vol.1. 3aed. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 23.

[11] Desse modo, para uma teoria jurídica desenvolver-se sob as bases de um paradigma pós-positivista, faz-se necessário elaborar juntamente uma concepção pós-positivista de norma que a distinga do texto normativo, o que, por sua vez, implica a necessidade de uma estruturação pós-positivista de sentença não mais vista como um processo de subsunção. In: ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 49.

[12] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça. São Paulo: RT, 2011, p. 388.

[13] CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5.

[14] Nesse sentido, Luiz Eduardo Mourão elucida: "De outro lado, porque inúmeros órgãos do Poder Legislativo e do Poder Executivo exercem, em diversas oportunidades, atividade tradicionalmente tida como jurisdicional. Em nosso país, exemplo claro e corriqueiro são as atividades exercidas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito que, em essência, são típicas de um juiz de direito”. (MOURÃO, Luiz Eduardo. Coisa Julgada. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 443)

[15] 1 - Exposição de Motivos do PL8.0466/10 sobre oNCPCC, reconhece no art. 2ºº “pretendeu-se converter o processo em instrumento incluído no contexto social em que produzirá efeito o seu resultado”. (..) 2- A Resolução do CNJ nº.1255/2010, inclui: “o direito de acesso à justiça, prevista no art. 5ºº, XXXV além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à ordem jurídica justa. In: MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça. São Paulo: RT, 2011, p. 338.

[16] Essa terceira onda de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além – ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. (CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à Justiça, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 66).

[17] CAPPELLETTI, Mauro, e GARTH, Bryant, Acesso à Justiça, tradução de Hellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1988, p. 71.

[18] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça. São Paulo: RT, 2011, p. 395.

[19] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça. São Paulo: RT, 2011, p. 400.
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