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A possibilidade da criação de título executivo através das convenções processuais

Por: Estefania Côrtes
Mestranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro – FND-UFRJ, e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, advogada.


A clausula dos negócios jurídicos processuais, inserida no art. 190 do atual código de processo civil de 2015, está incluída na parte geral da nova sistemática normativa e, por força dos artigos 318 e 771, parágrafo único, do mesmo diploma, que tratam da aplicabilidade subsidiária do rito comum, a regra se aplica aos procedimentos especiais e, também, aos processos executivos.

A base teórica dos negócios jurídicos processuais reside no novo modelo de estrutura organizacional do processo, quanto ao papel de cada sujeito. O atual código estabelece um modelo processual comparticipativo[1], colaborativo, em que as partes, ao lado do Estado juiz, se equiparam quanto aos poderes processuais, conduzindo conjuntamente, de forma colaborativa, a construção por um resultado justo e equilibrado do processo. “Colaboração é um modelo de processo civil que visa organizar o papel das partes e do juiz na conformação do processo”.[2]

O modelo processual cooperativo implantado pelo código de processo civil de 2015 permite chegar à conclusão de que há um maior empoderamento das partes no processo, ilustrado, dentre outras regras, por aquela que consagra a norma dos negócios jurídicos processuais (190, CPC/15). Segundo o professor Dierle Nunes, a cooperação viabiliza o processo como “comunidade de trabalho”[3] compartilhada entre todos os operadores no rito processual.

Ora, se o processo civil, sob a égide do novo modelo cooperativo da lei, deve garantir às partes maior participação no processo, não há dúvidas de que essa mesma mentalidade de estrutura organizacional deve, igualmente, se aplicar aos processos executivos, distribuindo aos exequentes e executados os mesmos poderes negociais.

É importante destacar que a regra geral dos negócios processuais, ao contrário do que se afirma aleatoriamente nos corredores dos fóruns brasileiros, não significa a imposição de um “coleguismo boa praça” entre os litigantes do processo. Em verdade, a cláusula negocial viabiliza às partes o poder de fixação e alteração de regras procedimentais, bem como de situações jurídicas do processo, como direitos subjetivos, ônus, poderes, deveres e faculdades na respectiva esfera de disponibilidade processual.

Não se trata apenas da possibilidade de as partes abrirem mão do direito material envolvido na relação jurídica processual, mas, também e principalmente, flexibilizar o procedimento, regulando de forma diversa da lei, escolhendo os efeitos a serem produzidos pelos atos processuais no processo. Trata-se de um viés privatista do processo que deixa ao arbítrio das partes uma margem flexível de disposição, pois admite que elas alterem o curso do rito processual.

As convenções processuais representam um fato jurídico processual em sentido amplo para uns[4] e ato dispositivo processual para outros[5], a depender da admissibilidade ou não da adoção de uma teoria geral dos atos jurídicos voltada para o direito processual civil[6].

Independentemente da natureza conceitual dos negócios jurídicos bem como das demais peculiaridades das convenções processuais, cujo aprofundamento não é pertinente ao objeto destas linhas, há de se reconhecer que as partes no rito executivo também poderão firmar convenções quando o objeto material litigioso se desenvolver sob o rito executivo.[7]

Na execução são visíveis tanto uns quanto outros. Basta pensar, por exemplo, na hipótese prevista tipicamente em lei que permite ao executado efetuar o pagamento de 30% do valor da quantia devida e parcelar o saldo devedor em seis prestações remanescentes, (916, CPC/15). Trata-se de negócio processual unilateral[8] tipicamente previsto em lei, por meio do qual o executado pode escolher a forma de pagamento na execução de quantia certa fundada em título extrajudicial. Outro exemplo que também se destaca é o negócio processual bilateral típico que permite à parte exequente e executada convencionarem um alienante judicial, à livre escolha de ambos para alienação dos bens penhorados na execução de título extrajudicial (art. 880, § 4º CPC/15).

Talvez os negócios processuais atípicos tenham uma maior dificuldade de aceitação na prática e na doutrina, em razão da ausência de previsão de critérios limitadores exatos, gerando, portanto, a sensação de insegurança jurídica. No entanto, diante da mudança da legislação, deve-se buscar, principalmente, a mudança de mentalidade a fim de que se obtenha o sucesso do instituto.

Passa-se, então, a analisar uma hipótese específica de negócio atípico na execução, que nos propomos à reflexão.

O módulo executivo, na sistemática do atual código de processo civil, pode ser desenvolvido sincreticamente nas hipóteses de executividade de título judicial, conforme as regras de cumprimento de sentença previstas a partir do art. 513 e seguintes do CPC/15, bem como pode ser instaurado com base em um dos títulos executivos extrajudiciais previstos tipicamente na regra contida no art. 784 do CPC/15.

Notadamente, um dos princípios basilares que informam o processo executivo é o princípio da taxatividade, que consagra a ideia de que os títulos executivos somente podem ser criados por lei, já que, em matéria processual, somente a União pode deter a iniciativa legislativa, em razão do dispositivo constitucional do art. 22, I da Constituição da Republica Federativa do Brasil, CRFB/88.

Logo, a criação de títulos executivos sempre foi matéria reservada à competência legal federal.

Esse é um ponto nodal que nos propomos a refletir à luz do código de processo civil vigente. Exatamente nesse ponto, se indaga sobre a possibilidade de um negócio jurídico firmado entre as partes criar um título executivo que não esteja no rol taxativo do art. 784 do CPC/15. Pensamos que sim. Isso porque a grande novidade das convenções processuais é o poder atribuído pela lei às partes para modificar ou criar uma situação processual diversa da estabelecida pelo rito legal, em verdadeira flexibilização procedimental.

Embora a Constituição Federal, no seu art. 22, I preveja a iniciativa legal da União para legislar sobre direito processual, a norma também federal consagrada no art. 190 do CPC/15 concede às partes do processo o poder de modificar consensualmente o rito do processo. Não há óbice, nem limitação legal que represente ofensa à matéria de ordem pública, caso os sujeitos resolvam criar um título executivo fora das hipóteses da lei.

Na doutrina, pouco se falou até agora sobre essa questão. Em relação à possibilidade de as partes na execução poderem criar título executivo extrajudicial, Fabiano Carvalho[9] se posicionou favoravelmente, nesse mesmo sentido.

Em relação à criação de títulos extrajudiciais fora das hipóteses do art. 784, como já dito, não há ofensa a qualquer matéria de ordem pública.

Obviamente, pode-se admitir que há de fato a possibilidade de os particulares criarem um título executivo além das hipóteses taxativas do art. 784, mas poder-se-ia pensar, por outro lado, que haveria uma solução prática facilitada se eles optassem por atribuir força executiva apenas inserindo duas testemunhas no documento particular negocial, satisfazendo, assim, a exigência prevista no inciso II do 784, que está dentro do rol de títulos extrajudiciais da lei.[10]

Entretanto, essa argumentação não impede a criação de títulos além do rol, apenas evidencia mais uma alternativa às partes no processo executivo.

O ideal, inclusive, é estimular as partes a vislumbrarem consensualmente qual a estratégia mais adequada para a satisfação dos seus direitos. É certo que as partes podem assinar um documento e atribuir a ele força executiva se estiverem presentes duas testemunhas (784, II, CPC/15). Contudo, é certo, também, que elas podem atribuir livremente força executiva a um documento, sem qualquer exigência extra, sendo suficiente a vontade firmada neste sentido.

Com efeito, a indagação que se problematiza seria: haveria alguma limitação para a criação convencional de título extrajudicial, fora das hipóteses do 784 do CPC?

Há, ainda, grande carência doutrinária a respeito da regulamentação dos limites dos negócios atípicos, mas já existem alguns apontamentos orientadores. Dentre os limites gerais dos negócios processuais apontados por Antônio do Passo Cabral, há um que merece destaque para este trabalho. É aquele que guarda relação com a análise de a matéria objeto da negociação ser ou não objeto de reserva legal[11].

Ora, o princípio da taxatividade, como já anteriormente afirmado, não representa óbice para a criação de título executivo fora das hipóteses legais, tendo em vista que a própria lei federal atribui às partes, por meio da cláusula geral do art. 190 do CPC/15, o poder de alterar situações jurídicas e dispor sobre regras processuais dispositivas. Não há ofensa aos princípios que correspondam ao núcleo essencial do procedimento executivo.

Num raciocínio paralelo, vejamos o princípio da taxatividade no que tange à criação de mecanismos recursais. Tradicionalmente, no âmbito privado, tanto a criação de recursos, quanto a criação de títulos executivos extrajudiciais são vedados em razão do princípio da reserva legal prevista na Constituição da República.

No que tange ao regime recursal, a reserva legal para criação de recursos é plenamente justificável no nosso modo de ver. No plano da competência recursal, o critério limitador é funcional, ou seja, hipótese de competência absoluta. Em se tratando de competência funcional recursal que consubstancia matéria de ordem pública, conclui-se que os interesses particulares dos jurisdicionados, na qualidade de partes negociantes, não podem sobre ela regulamentar.

Assim, à luz desse raciocínio sobre matéria de ordem pública que envolve competência absoluta funcional recursal, é inevitável que se conclua pela impossibilidade de as partes convencionarem a criação de um recurso atípico.[12] Vigora em desfavor da aplicação da regra geral da cláusula do art. 190 do CPC/15 o princípio da taxatividade.

No entanto, o mesmo raciocínio construído para a vedação de criação convencional de recursos sem previsão legal não pode ser transportado para uma indigitada vedação de previsão de hipóteses fáticas executivas, vislumbradas pelas próprias partes, mediante livre disposição de vontade. As hipóteses fáticas que envolvem prestações obrigacionais entre sujeitos não constituem tema que somente possa ser regulamentado por lei. Não representam matéria de ordem pública e, por isso, não são óbice para o autorregramento de interesses particulares na execução.

A obrigação que tenha força executiva por força da vontade das partes, se caracterizaria como um título além do rol de títulos extrajudiciais executivos previstos no art. 784 do CPC/15.

Ora, mas não seria exatamente essa a ideia advinda da nova mentalidade que se impõe com a cláusula do art. 190 do CPC/15, que permite alteração do rito processual pelos sujeitos do processo? Ao criar títulos extrajudiciais atípicos as partes não estariam flexibilizando o procedimento executivo? Pois bem. Essas razões, por si somente, já deixariam estreme de dúvidas a possibilidade de o exequente e o executado ampliarem o rol legal dos títulos executivos extrajudiciais.

Importante perceber, além de tudo isso, que há um significativo âmbito de disponibilidade no Processo Executivo. O sujeito que pode ocupar o polo ativo na execução de título extrajudicial pode, alternativamente, a seu critério, optar pelo rito do processo comum de conhecimento (785, CPC/15) ou, ainda, pode desistir do prosseguimento da demanda prescindindo da anuência do executado (775, CPC/15). Forçosa é a conclusão, deste modo, de que a escolha pelo rito comum ou executivo é ato dispositivo do jurisdicionado. Há de se notar que a competência funcional da execução autônoma fica a critério do exequente, já que a própria lei lhe faculta essa opção.

Vê-se que a própria função jurisdicional executiva é opcional ao jurisdicionado. Por qual razão as partes, em convenção consensual, não poderiam, em interpretação transversa do art. 785 do CPC/15, abrir mão do rito de conhecimento para partir direto para o rito satisfativo? Nesse caso, as partes abririam mão do rito exauriente cognitivo para efetivação direta executiva de direitos. Então, por qual razão as partes não poderiam criar um título executivo extrajudicial que não esteja previsto no rol legal, estipulando segundo a vontade privada, a atividade executiva direta? Mitigado o princípio da taxatividade, não há razão para impedir a criação convencional de título executivo.

Pensamos que a mentalidade cooperativa e distributiva de forças imposta pelo código de processo civil vigente não deixa dúvidas sobre a possibilidade de as partes criarem títulos executivos além do rol legal.

Diante de todo o raciocínio desenvolvido nessas linhas, percebe-se que os aplicadores do Direito deverão e, principalmente, poderão adotar uma postura mais moderna e democrática, tendo em vista a mentalidade inovadora trazida pelo código de processo civil que, obviamente, trará ao processo executivo mais dinamismo e efetividade (4º, CPC/15).

[1] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil como pret´à portér: um convite ao diálogo para Lenio Streck. Revista de Processo. Ano 36. 2011.

[2] Idem.

[3] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Por um novo paradigma processual. Revista de Processo, ano 36, vol. 199, set., 2011.

[4] CUNHA, Leonardo Carneiro. Direito Intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense. 2016. 1ª ed. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. Vol. 1. Salvador: Jus Podium. 2015. Pag. 376. Há quem classifique os negócios, num mesmo sentido, dentro de uma Teoria Geral de fatos jurídicos processuais: “No entanto, quando investigamos a possibilidade de transportar as definições da teoria geral dos fatos e atos jurídicos para o direito processual, vemos que os negócios jurídicos processuais também podem ter conceituação muito similar à do direito privado”. CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Jus Podium. 2016. P. 48.

[5] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Introdução ao Direito Processual Civil. Vol I. Rio de Janeiro: Forense. 2015. P.279.

[6] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Jus Podium. 2016. Pag. 43 a 45.

[7] A respeito das convenções na Execução, Fredie Didier Jr. Destaca, logo nos primeiros parágrafos da nota ao quinto volume do seu Curso de Direito Processual, a importância dos negócios no processo executivo, afirmando, inclusive, que é o âmbito processual mais adequado para aplicação da clausula geral em apreço. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito processual civil: execução. Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Paula Sarno Braga, Rafael Alexandria de Oliveira, 8 ed, rev., ampl., e atual., Salvador: Ed. JusPodium, 2017. P. 32.

[8] Pensamos na mesma linha da “Processualista” Marcela Kolhbach, para quem a regra prevista no art. 916 consubstancia um direito potestativo do executado que escolhe tanto efetuar o pagamento no valor de 30% do montante da quantia devida, quanto o efeito do parcelamento referente ao saldo remanescente em 06 prestações. Ao nosso modo de ver, não se trata de ato unilateral, visto que a escolha quanto ao resultado do negócio é escolhido pelo executado e está previsto tipicamente em lei. KOLHBACH, Marcela. Negócios Jurídicos Processuais unilaterais e o requerimento de parcelamento do débito pelo executado. Negócios Processuais/coordenadores: Antonio do passo Cabral, Pedro Henrique Nogueira. 2ª ed. Rev., atual., e ampl. – Salvador: JusPodium, 2016. P. 393-407.

[9] “O art. 771, caput, parte final, do CPC/15 estabelece que é possível a prática de atos executivos tendentes a efetivar “atos ou fatos processuais a que a lei atribuir força executiva”. Nesse ponto o CPC/15 parece inovar. A expressão da lei é significativamente lacunosa e sugere que a atividade jurisdicional executiva possa ser exercitada mesmo ausente o título executivo, o que de certo modo abala o princípio da nulla executio sine titulo, colocaria em dúvida a afirmação de ser taxativo o rol dos títulos executivos e se contraporia ao nome do capítulo IV do título I do Livro II da Parte Especial “Dos requisitos necessários para realizar qualquer execução”, onde se encontra o art. 799 do CPC/15, que enuncia: “a execução para cobrança de crédito se fundará sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível, a valer a atuação jurisdicional executiva de ato ou fato processual. Um bom exemplo para atrair a incidência do art. 771, caput, parte final, do CPC/2015 é a hipótese de “negócio jurídico processual” (v. Art. 191 CPC/2015), mediante o qual durante o processo as partes acordam o rateio de despesas processuais, posteriormente descumprido por uma delas.” CARVALHO, Fabiano. Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Revista dos Tribunais. 2016. P. 1771 a 1772.

[10] CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. Salvador: Jus Podium. 2016. P. 317.

[11] Idem. P. 316

[12] No sentido do texto: DIDIER JR. Fredie e CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processo nos Tribunais. Vol.3. 13ª Ed. Salvador: Jus Podium. 2016. P. 111.
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