Artigos

Julgamento monocrático e agravo interno no novo CPC

Por: Fernanda Medina Pantoja
Advogada, sócia do escritório Sérgio Bermudes, graduada em direito, doutora e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora visitante na Universidade de Cambridge (Inglaterra). Professora de Direito Processual Civil na PUC-Rio. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual.


Não era raro, na vigência do CPC/73, que o relator de um recurso lhe negasse provimento, por meio de decisão monocrática, com base no fundamento de que seria “manifestamente improcedente”, pelo simples fato de já possuir, o próprio julgador, um entendimento consolidado sobre a matéria ali discutida.

Restava ao agravante, então, insurgir-se por meio de agravo interno – este interposto em apenas 30% dos casos de inadmissão, provimento ou desprovimento monocrático.[1]

Nada obstante, ainda que interposto o agravo interno, o seu procedimento era bastante ágil, visto que o prazo de interposição era de cinco dias corridos; não se exigia a intimação do agravado para apresentar contrarrazões; e o julgamento colegiado do recurso se dava “em mesa”, sem a necessidade de sua inclusão em pauta.

Tais particularidades faziam com que o tempo de trâmite do recurso, como um todo, fosse mais célere no caso de prolação da decisão monocrática, ainda que contra ela houvesse subsequente interposição de agravo interno, do que na hipótese de seu julgamento direto pelo órgão colegiado. [2]

Muitas dessas circunstâncias foram modificadas com a edição do novo Código de Processo Civil. Embora tenha mantido os poderes decisórios do relator para julgar monocraticamente qualquer tipo de recurso (e outros tipos de processos), alteraram-se, por exemplo, os casos que autorizam o julgamento singular, dentre os quais não mais se insere a genérica e discricionária hipótese de “manifesta improcedência”. Além disso, as mudanças no procedimento do agravo interno, conquanto tenham reforçado as garantias processuais das partes, tiveram a desvantagem de deitar por terra a celeridade que o caracterizava.

Em um breve retrospecto, lembre-se que a possibilidade de julgamento pelo relator não é recente. Já a previa o CPC/73 em sua redação original, embora estivesse, então, adstrita justamente à hipótese de manifesta improcedência do agravo de instrumento. Já se dispunha também sobre o cabimento de um recurso – dito “inominado” – ao órgão colegiado, contra aquela decisão.[3]

Com as reformas legislativas promovidas na década de 90[4], o julgamento singular foi estendido a todas as espécies de recursos e diversificaram-se as suas hipóteses de cabimento, que passaram a abarcar a possibilidade de o relator negar seguimento não somente ao recurso manifestamente improcedente, mas também ao inadmissível, prejudicado, contrário à súmula, e àquele que confrontasse a jurisprudência dominante do próprio tribunal, do STF ou do STJ. No ensejo, estabeleceu-se, ainda, a recíproca possibilidade de o relator dar provimento ao recurso, caso a decisão recorrida contrariasse súmula ou jurisprudência dominante dos tribunais superiores.

Ao recurso cabível para atacar a decisão monocrática passou-se a nomear agravo interno, com a fixação expressa do prazo de cinco dias para a sua interposição e a possibilidade de retratação pelo relator. Pretendeu-se desencorajar sua interposição, mediante a cominação de multa de 1 a 10% do valor da causa, a ser revertida ao recorrido, em caso de recurso manifestamente inadmissível ou infundado; e, por fim, condicionou-se ao pagamento da multa a interposição de qualquer outra ferramenta recursal.[5]

Em paralelo à ampliação legal das hipóteses de julgamento singular, seu uso na prática também recrudesceu. Por exemplo, em 2008, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, os julgamentos por meio de decisão monocrática respondiam por nada menos que 40% do total de decisões de inadmissão, provimento ou desprovimento de recursos.[6]

Com o novo Código de Processo Civil, as hipóteses de não conhecimento pelo relator passaram a incluir, além do recurso inadmissível e prejudicado, também aquele que tenha deixado de impugnar especificamente os fundamentos da decisão recorrida (art. 932, III). Trata-se de hipótese que sequer exigiria indicação autônoma, porquanto inserta nos requisitos de admissibilidade dos recursos, mais especificamente a sua regularidade formal.[7]

A maior mudança decerto diz respeito aos casos em que autorizada a prolação de decisão monocrática de mérito. Na tentativa de superar a subjetividade que subsidiava os julgamentos de “manifesta improcedência”, o relator agora só pode dar ou negar provimento ao recurso quando versar sobre matéria sobre a qual exista entendimento consolidado em súmula do STF, do STJ ou do próprio Tribunal; acórdãos do STF ou STJ em julgamento de recursos repetitivos; ou entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência (art. 932, IV e V).

Visa-se, assim, a evitar a realização da sessão colegiada quando parece despicienda, seja por força da existência de um vício manifesto, a impor o não conhecimento do recurso; seja pela existência de entendimento pacificado por algumas espécies de precedentes vinculantes, a determinar o seu provimento ou desprovimento.

No que diz respeito ao procedimento do agravo interno, o prazo para a sua interposição foi sensivelmente ampliado, de cinco dias corridos para quinze dias úteis (art. 1.021, § 2o). Por conta de um julgado de abril de 2016 do STJ, em matéria criminal, no qual se firmou o entendimento de que o novo CPC não teria revogado os prazos especiais da Lei 8.038/90 (que disciplina recursos no STJ e STF)[8], chegou-se a temer que o mesmo fundamento justificasse, também em matéria não penal, a manutenção do prazo de cinco dias para interposição do agravo interno contra decisão monocrática, no âmbito dos tribunais superiores. Contudo, a jurisprudência daquela Corte já se pacificou no acertado sentido de que prevalece, em tais casos, a norma do CPC/2015.[9] E, ainda que o art. 1.021, caput, faça a ressalva de que o processamento do agravo interno observará “as regras do regimento interno”, isso não permite aos tribunais, por óbvio, definir um prazo diverso daquele expressamente estabelecido pela lei federal.

Outro elogio que se pode render à regulamentação do agravo interno na nova lei é o de que, em reforço ao contraditório participativo e à oralidade, passou a prever a necessária intimação do recorrido para responder ao recurso[10] e a sua impositiva inclusão em pauta. Seria razoável que houvesse disposto também, de forma expressa, sobre a existência de sustentação oral nos agravos internos interpostos no bojo de recursos que originariamente a admitiriam. Embora inicialmente prevista no art. 937, inciso VII, essa possibilidade foi suprimida do texto legal por veto presidencial, na derradeira fase de aprovação do CPC/2015.[11] O veto não pode subjugar, porém, o direito das partes à sustentação oral, quando o recurso originário a comportava.[12] Lembre-se, ademais, que o próprio regimento interno dos tribunais pode estabelecer outros casos de sustentação oral (art. 937, IX).

Ocorre que as mencionadas modificações procedimentais, apesar de seus inequívocos benefícios, tiveram inevitável impacto no tempo de julgamento do recurso, o que em determinados casos chega a desencorajar a própria interposição do agravo interno. Imagine-se, por exemplo, a hipótese, bastante habitual, de uma decisão liminar monocrática que nega o efeito suspensivo ou ativo a um recurso – antes expressamente irrecorrível[13], mas hoje impugnável por meio de agravo interno[14] – e determina, no mesmo ato, a intimação do recorrido para apresentar contrarrazões ao agravo de instrumento. Considerando que, caso interponha agravo interno, o recorrente terá de aguardar o decurso do prazo para a apresentação de resposta pelo recorrido e pela inclusão do feito em pauta, é bem possível que lhe valha mais a pena esperar pelo julgamento de mérito do próprio agravo de instrumento, sem manejar o recurso cabível contra a decisão concessiva da liminar.

Quanto à condenação do agravante ao pagamento de multa ao agravado, nota-se, além da redução do percentual de seu teto[15], uma sutil alteração no texto legal em relação ao seu cabimento: em vez de aludir aos recursos manifestamente inadmissíveis e infundados, como o fazia o CPC/73, o novo Código refere-se aos agravos internos declarados manifestamente inadmissíveis ou improcedentes em votação unânime.

Não se pode negar que a imposição da multa figure um instrumento legítimo para coibir o exercício abusivo do direito de recorrer, e que a interposição de um agravo interno cuja inadmissibilidade seja flagrante, reconhecida pela unanimidade do colegiado, ilustre esse abuso.

É inaceitável, porém, que o recorrente seja sancionado simplesmente porque o colegiado reputou “manifestamente infundado” ou, conforme o novo termo usado pelo legislador, “manifestamente improcedente” o seu agravo interno.[16] Ambas as expressões encerram hipóteses cuja imprecisão outorga aos julgadores censurável arbítrio para defini-las. Não se justifica que a lei, de um lado, tenha afastado a discricionariedade do julgador ao vedar a possibilidade de decisão monocrática de mérito com fundamento na manifesta improcedência do recurso; mas, de outro, haja mantido a aplicação da multa ao agravo interno com base exatamente nessa hipótese.

Por mais que a decisão monocrática recorrida coincida com a jurisprudência consolidada de tribunais superiores, ou mesmo do próprio tribunal, a respeito daquela questão, o agravante não deveria jamais ser privado do direito de ter os seus argumentos apreciados pelo órgão colegiado, em cumprimento aos princípios constitucionais do contraditório, do acesso à justiça e do juiz natural, máxime diante da inafastável exigência de esgotamento das vias ordinárias para a abertura das vias excepcionais. É também bastante questionável, por razões análogas, a constitucionalidade da exigência de depósito da multa para que o agravante possa recorrer aos tribunais superiores.[17]

De modo geral, as alterações promovidas pela nova legislação civil aperfeiçoaram a sistemática do julgamento singular e a do agravo interno, salvo em relação a alguns aspectos, cuja disciplina já era igualmente falha no CPC anterior, como a ausência da previsão de sustentação oral nos recursos que originalmente a comportam, a aplicação de multa aos agravos internos manifestamente improcedentes e a exigência de depósito da multa como condição de recorribilidade.

[1] De acordo com as conclusões da Pesquisa Decisão Monocrática e agravo interno: celeridade ou entrave Processual? A Justiça do Rio de Janeiro, desenvolvida pelo Centro de Justiça e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas – RJ em 2009, cerca de 1/3 das decisões singulares eram atacadas por agravo interno. Isso significa que 2/3 dos julgados proferidos pelos relatores encerravam a demanda, sem qualquer revisão por parte do colegiado. Constatou-se, ainda, que a natureza do recurso não interferia no percentual de interposição de agravo interno: em 2008, houve ataque a 34,5% das singulares em agravo e 36,1% em apelação. PANTOJA, Fernanda Medina; FERRAZ, Leslie S. “Julgamento Singular e Agravo Interno: Uma Análise Empírica”. Revista de Processo, v. 211, p. 61-100, 2012.

[2] PANTOJA, Fernanda Medina; FERRAZ, Leslie S. Julgamento Singular e Agravo Interno: Uma Análise Empírica, ob. Cit..

[3] O prazo para interposição do recurso inominado, antecessor do agravo interno, foi estabelecido em cinco dias pela doutrina e pela jurisprudência, já que a lei não o fixava. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Algumas inovações da Lei n. 9.765/1998 em matéria de recursos cíveis”. In: Nelson Nery Júnior; Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos Recursos Cíveis, v. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 320-329.

[4] Leis nº 9.1399/95 e9.7566/98.

[5] Art. 5577 doCPCC/1973.

[6] Em 2008, o TJRJ proferiu 97.626 acórdãos e 64.359 decisões, o que correspondia a 60% de julgamentos colegiados e 40% monocráticos. Verificou-se que a natureza do recurso interferia na utilização de decisões singulares, mais frequentes em agravos de instrumento (53,8% dos casos) do que em apelações (31,5%). PANTOJA, Fernanda Medina; FERRAZ, Leslie S. Julgamento Singular e Agravo Interno: Uma Análise Empírica, ob. Cit.

[7] É de se destacar que, em qualquer um dos casos indicados, antes de não conhecer do recurso, o relator deve conceder o prazo de cinco dias ao recorrente para que seja sanado o vício ou complementada a documentação exigível, conforme disposto no art. 932, par. Único. Tratando-se de recurso extraordinário ou especial, aplica-se o disposto no art. 1.029, § 3o, que autoriza a desconsideração ou correção de “vício formal de recurso tempestivo” que não se repute grave. Sobre as polêmicas que envolvem a sanabilidade dos vícios recursais, TEMER, Sofia. “NCPC: correção de vícios nos recursos”. Disponível em https://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/357104956/ncpc-correção-de-vicios-dos-recursos, com último acesso em 30 de outubro de 2016.

[8] STJ, AgRg na Rcl 30714/PB, 3ª Seção, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. Em 27.04.2016.

[9] V., por exemplo, AgInt nos EREsp 1.377.897/RJ, 2ª Seção, rel. Min. Moura Ribeiro, j. Em 14.09.2016.

[10] Na esteira de entendimento jurisprudencial externado ainda na vigência doCPCC/73: STJ, REsp 103.884-4/PR, 1ª Seção, rel. Min. Teori Zavascki, j. Em 08.10.2008.

[11] Note-se que há manifesta incoerência desse veto com a manutenção do art. 9377, § 3oo, doCPC/20155, segundo o qual, “nos processos de competência originária previstos no inciso VI, caberá sustentação oral no agravo interno interposto contra decisão de relator que o extinga”.

[12] Nesse mesmo sentido, OLVEIRA, Pedro Miranda de. Novíssimo Sistema Recursal conforme o CPC/2015. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 150.

[13] Art. 5277, parágrafo únicoo, doCPCC/73.

[14] O caput do art. 1.0211 doCPC/20155 prevê, genericamente, que caberá agravo interno para o respectivo órgão colegiado contra decisão proferida pelo relator. Todavia, obviamente, a própria lei estabelece exceções à regra geral, afirmando a irrecorribilidade de determinadas decisões singulares, como é o caso, por exemplo, da decisão que admite o amicus curiae (art. 138).

[15] De 10% para 5% do valor da causa (art. 1.021, § 4o, do CPC/2015).

[16] Não nos parece que haja distinção relevante entre os casos de recurso infundado ou improcedente. Em sentido contrário, porém, Arlete Aurelli e Izabel Cristina Pantaleão afirmam que, embora pareça uma modificação sem importância à primeira vista, não o é: “Entendemos que a alteração prejudica o jurisdicionado, porque mudou de infundado para improcedente. Infundado, na nossa visão, seria o recurso sem fundamento, apresentado apenas para protelar o trânsito em julgado da decisão. Já o recurso improcedente diz respeito ao mérito que, embora tenha sido fundamentado, não será capaz de alterar a decisão recorrida.” AURELLI, Arlete e PANTALEÃO, Izabel Cristina. “A multa do agravo interno X a necessidade de esgotamento das vias ordinárias para a interposição dos recursos excepcionais”. Disponível em http://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/354373498/a-multa-do-agravo-internoxa-necessidade-de-esgotamento-das-vias-ordinárias-paraainterposicao-dos-recursos-excepcionais”, com último acesso em 30.10.2016. Também o STF não tem feito distinção entre recursos manifestamente "infundados" e "improcedentes", para fins de aplicação da multa do art. 1.021, par.4º., do CPC/2015 (AgRg no RE com Ag 938.519, 1a. Turma, rel. Min. Marco Aurélio Mello, j. Em 24.05.2016).

[17] Art. 1.0211, § 5oo, doCPC/20155.
« Voltar