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Podem as partes convencionar sobre a atividade probatória do juiz?

Por: Trícia Navarro Xavier Cabral
Doutora em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito Processual pela UFES. Juíza de Direito no Estado do Espírito Santo. Membro da Comissão Acadêmica do FONAMEC. Membro efetivo do IBDP.


O CPC/15 trouxe interessantes alterações processuais e ideológicas, visando alcançar maior efetividade na tutela jurisdicional. E uma dessas novidades foi o incremento do exercício do poder de autorregramento da vontade das partes no processo, o que pode ser verificado em diversas passagens do Código.

Com isso, a intenção do legislador foi a de transpor o direito fundamental à liberdade para o processo civil, reconhecendo-o como forma legítima de manifestação da vontade, harmonizando, assim, a participação dos sujeitos processuais, por meio de instituição de variados atos de disposição pelas partes, os quais devem conviver de modo equilibrado com as prerrogativas do juiz.

Essa tendência se alinha ao princípio da cooperação (art. 6º), e ainda pode ser atrelada a outras normas fundamentais do Código de Processo Civil, como a da boa-fé objetiva dos agentes processuais (art. 5º), a do contraditório efetivo (arts. 7º e 9º) e a da vedação de decisão surpresa pelo magistrado (art. 10).

Registre-se que, no que tange à participação dos sujeitos processuais na modulação do procedimento, o nosso ordenamento processual já permitia a sua ocorrência por imposição legal e por ato do juiz, mas agora autoriza duas outras espécies de flexibilização: por atos de disposição das partes (art. 190) e a por ato conjunto das partes e do juiz (art. 191).

Assim, o CPC/15 instituiu um verdadeiro microssistema legal de proteção ao livre exercício da vontade no processo civil, com normas relativas a diferentes institutos que se adequam à ideia de liberdade procedimental, podendo-se citar, exemplificadamente, três: a) o estímulo à autocomposição; b) os negócios processuais típicos e a cláusula geral de negociação processual (negócios processuais atípicos); e c) os saneamentos compartilhado e negociado.

No que tange às convenções processuais, elas podem sofrer classificações[1], sendo que as mais relevantes para o presente estudo seriam: a) prévias ou incidentais; b) típicas e atípicas; e c) bilaterais ou plurilaterais.

Em relação ao momento, a possibilidade de as partes firmarem uma convenção em matéria de processo, dispondo sobre seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, tanto extrajudicialmente, quanto durante o processo judicial, está identificada no art. 190, do CPC/15, e reflete a hipótese de cláusula geral de negociação processual, ou negócio processual atípico, cujo formato pode ser regulamentado pelas partes e, em regra, não necessita da homologação do juiz.

Quanto à forma, as convenções processuais podem ser típicas, ou seja, previstas em lei, em que o legislador disciplina os sujeitos, as formalidades, os pressupostos e os requisitos de validade e eficácia, ou atípicas (cláusula geral de convencionalidade no processo), que são praticadas em razão da autonomia das partes, sem que haja um modelo legal preestabelecido.

Já em relação aos participantes, as convenções processuais bilaterais são aquelas em que as vontades das partes se unem para um interesse comum, enquanto que as convenções plurilaterais seriam as que envolvem a vontade de mais de dois sujeitos, como ocorre na sucessão processual voluntária ou quando são celebrados com a participação do juiz.[2]-[3]

Dessa forma, o juiz pode exercer dois papeis nas convenções processuais: a) o de controlador da validade da convenção; e b) o de parte e, ainda assim, exercer o controle do acordo.

Em relação ao comportamento do magistrado frente às convenções em tema de processo, deve ser ressaltado que elas não podem ser conhecidas por iniciativa do juiz, precisando de provocação das partes.

Porém, uma vez alegadas, devem produzir efeitos imediatos no processo, com o mesmo regime jurídico das declarações de vontade de que trata o artigo 200, CPC/15, não necessitando de homologação do juiz, o qual aplicará a norma da convenção processual simplesmente por ser válida, salvo disposição legal em contrário.[4]

Assim, o controle judicial sobre a declaração de vontade das partes será sempre essencial para a produção de efeitos no processo, ainda que limitado ao aspecto de sua validade também para impulsionar o feito. Desse modo, competirá ao juiz efetuar a devida conferência quanto aos limites e à existência de vícios materiais e processuais e, caso não haja máculas à sua validade, aplicar as regras convencionadas, sem a necessidade de um pronunciamento homologatório próprio, a não ser que a lei exija.

Além disso, se o ato de disposição das partes envolver prerrogativa do juiz, este deve não só controlar a validade da convenção, mas também concordar[5] com o que restou estabelecido e assim integrar a convenção, vinculando seus atos às novas regras procedimentais. Caso o magistrado discorde da inclusão na convenção de atos que seriam oriundos de seus poderes e não queira se vincular ao pacto, deverá se manifestar expressa e justificadamente sobre a sua exclusão, oportunizando as partes, inclusive, remodular cláusulas, se preciso for.

Dito isso, poderiam as partes dispor sobre a atividade probatória do juiz?

Não há dúvidas de que as partes podem dispor sobre seus ônus probatórios, tanto em relação aos meios, quanto no tocante ao modo de produção das provas. Com efeito, é plenamente possível que as partes convencionem, por exemplo, sobre a produção de prova pericial, e desde já escolham o perito que realizará os trabalhos.

Mas poderão as partes impedir que o juiz produza outras provas? De outra banda, poderá o juiz indeferir provas inúteis ou meramente protelatórias (art. 370, parágrafo único) ainda que convencionadas pelas partes?

Essas indagações passam por duas questões anteriores: a) saber qual o alcance dos poderes instrutórios do juiz, ou seja, se é autônomo (atuação independente da das partes) ou subsidiário (atuação somente para suprir eventual deficiência probatória das partes); b) identificar se o CPC/15 deu nova configuração à atividade probatória, fazendo com que a autonomia privada prevaleça sobre os poderes instrutórios do juiz.

Em relação à amplitude dos poderes instrutórios do juiz, importa esclarecer, inicialmente, que o adjetivo subsidiário deve ser interpretado sob a perspectiva do momento de atuação, ou seja, após a indicação e produção de provas pelas partes, e não com restrições de quantidade ou qualidade na produção de prova pelo magistrado[6]. Nesse contexto, tanto para quem entende que o poder instrutório do juiz é autônomo ou independente do das partes, quanto para os que defendem a subsidiariedade, haverá uma só conclusão: a de que as partes não podem convencionar sobre os poderes instrutórios do juiz.

De outra banda, não houve no CPC/15 qualquer alteração ideológica ou de regime jurídico em relação à atividade probatória do juiz, e tampouco a mudança topológica do dever-poder de instrução - saiu do capítulo relativo aos típicos poderes do juiz e foi reposicionado dentro do capítulo das provas – justifica uma interpretação diversa.[7]

Nesse passo, a nova perspectiva incutida no CPC/15, que busca modificar a relação verticalizada entre o juiz e as partes, equilibrando a participação dos sujeitos processuais no processo, para que atuem em cooperação, não retira ou diminui as prerrogativas probatórias do juiz, e nem faz com que a disponibilidade procedimental das partes em termos de prova se sobreponha à atividade judicial. A razão é simples: no meio dessa relação há um interesse maior em jogo, que é o exercício adequado da jurisdição e o atendimento aos seus escopos (social, político e jurídico).[8]

Dessa forma, o fato de as partes poderem dispor sobre o meio de prova e o modo de sua produção, não elimina o controle do juiz sobre os atos de disposição e nem alcança as seus poderes instrutórios.[9]

Por essa razão, caso as partes pretendam, consensualmente, produzir prova inútil ou protelatória, poderá o juiz indeferi-la, fundamentando as suas razões de decidir (art. 370, parágrafo único). Por outro lado, caso as partes dispensem a produção de provas que seriam necessárias, poderá o magistrado, utilizando-se de seus próprios poderes instrutórios, determinar a sua realização, a fim de que seu convencimento seja atingido satisfatoriamente.

Isso não significa que o juiz pretenda alcançar a chamada verdade real, material ou absoluta, mas sim que as alegações sobre os fatos possam ser demonstradas pelos meios lícitos de prova visando o convencimento judicial.

É certo que a prova é do processo e não das partes ou do juiz. Contudo enquanto sobre as partes recai o ônus probatório, sobre o juiz recai o dever de prestar uma tutela jurisdicional efetiva e justa. E dentro dessa distribuição de tarefas deverá o juiz considerar a manifestação de vontade das partes no tocante ao conjunto probatório que pretendem produzir, especialmente quando implicar em maior custo e tempo do processo, do mesmo modo que as partes deverão respeitar a decisão judicial de indeferir ou de produzir outras provas capazes de melhor elucidar a controvérsia instaurada.

Nisso sim consiste a nova dinâmica de equacionar as forças dentro do processo, sem interferências autoritárias de quaisquer dos sujeitos processuais na atividade alheia.

Em outros termos, não parece acertada a corrente doutrinária que defende que o poder de autorregramento das partes permitiria que elas determinassem a prova que deveria ser produzida, independentemente de sua relevância, ou a que não deveria ser produzida de acordo com as SUAS convicções, satisfações ou cognições sobre as alegações de fatos por elas próprias formuladas nos autos.

A partir do momento em que as partes se submetem à tutela jurisdicional, entregam à responsabilidade do Estado de exercer sua atividade de forma plena, uma vez que o interesse que passa a prevalecer é o de ordem pública, como expressão do autêntico Estado Democrático de Direito[10]. Assim, não há como condicionar o exercício da atividade estatal de julgar a limites que sequer o legislador impôs.

O caráter público do processo deve ser considerado quando se fala em distribuição de tarefas entre os sujeitos processuais, e por essa razão, o papel do juiz na condução e na gestão do processo é essencial para garantir o atingimento de sua finalidade, de modo a não autorizar que as partes definam, ainda que conjuntamente, sobre a extensão probatória que entendem conveniente para a resolução da controvérsia, especialmente em relação ao direito probatório, cuja natureza jurídica é processual.

Não se nega que as partes possam delimitar o objeto litigioso e, assim, restringir o âmbito cognitivo do juiz. Porém, as questões de fundo que restarem para julgamento deverão ser debatidas e provadas amplamente, assegurando o devido processo legal e o cumprimento do Poder Judiciário. Deve ser considerando, ainda, que o fato probando deve ser controvertido, relevante e determinado, caso contrário será insuscetível de prova. Essa é uma regra de interesse público, pois atende aos princípios da eficiência, razoabilidade, economia processual, duração razoável do processo, e que não pode ser sublimada pela vontade das partes.

Dessa forma, se o objeto da prova estiver comprovado pela via documental, um contrato, por exemplo, e as partes convencionarem a oitiva de testemunhas, poderá o juiz indeferir a prova, por ser absolutamente inútil para deslinde da questão. Em contrapartida, se o objeto litigioso for um acidente automobilístico e as partes convencionarem sobre a dispensa de provas orais, poderá o juiz determinar a sua produção para formar a sua convicção sobre os fatos alegados, não devendo se contentar com os elementos probatórios constantes dos autos.

Por fim, comparar a jurisdição estatal com o procedimento arbitral não parece ser uma boa alternativa, tendo em vista que os referidos modelos de jurisdição partem de premissas e escopos muito distintos, e somente na arbitragem se permite ampla disponibilidade das partes até mesmo para eleger o julgador, o que é impensável na esfera pública por ferir a garantia constitucional do juiz natural.

[1] Sobre o assunto, cf: CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPODIVUM, 2016.

[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2015, p. 378.

[3] Negando a possibilidade de o juiz ser parte nas convenções processuais, ver: CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPODIVUM, 2016, p. 223-225.

[4] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Convenções das partes sobre matéria processual. In: Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 98.

[5] No ordenamento francês a jurisprudência exige a concordância do juiz quando o acordo atingir alguma de suas prerrogativas. Caso contrário produz efeitos imediatamente. Cf.:ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. Das convenções processuais no processo civil. 2014. 247 p. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. p. 39-40.

[6] CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Poderes instrutórios do juiz no processo de conhecimento. (Coleção Andrea Proto Pisani – Coordenadores: Ada Pellegrini Grinover e Petrônio Calmon). Vol. 1. Brasília: Gazeta Jurídica, 2012.

[7] Em sentido contrário: GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. São Paulo: MÉTODO, 2016, p. 237.

[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª edição. Revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 178-184.

[9] LUCON, Paulo Henrique dos Santos. In: (CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coords.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. 2ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 574.

[10] CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Poderes instrutórios do juiz no processo de conhecimento. (Coleção Andrea Proto Pisani. Vol. 1). Brasília: Gazeta Jurídica, 2012, p. 53.
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