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Precedentes: Breves notas sobre vinculação, dever de fundamentação e superação

Por: Carolina Uzeda Libardoni
Advogada (Gordilho, Napolitano e Checchinato Advogados), mestranda em Direito Processual Civil pela PUC/SP, especialista em Direito Processual Civil pela PUC/RJ e em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá. Professora do curso de Especialização em Direito Processual Civil da PUC/RJ. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual.


Se tem uma palavra que ganhou destaque com o início da vigência do Código de Processo Civil de 2015, esta palavra é “precedente”. A doutrina está em polvorosa e não há temática que tenha atraído maior produção, no campo do direito processual civil, que o estudo das decisões com caráter vinculante. São inúmeros livros, artigos e textos em colunas eletrônicas destinados a desbravar aquilo que comumente tem sido tratado como uma das maiores novidades da legislação de 2015[1].

Palavras como distinção e superação (quando não utilizados os termos em inglês!) passaram a integrar o vocabulário do advogado brasileiro, que oscila entre a mania extrema e a incredulidade com as promessas de efetividade e isonomia que a doutrina tem feito.

Para colocar os pingos nos is é necessário deixar claro que a vinculação dos juízes não é exatamente uma novidade na vida do brasileiro[2]. Basta voltarmos nossa memória à súmula vinculante, à repercussão geral e aos recursos repetitivos.

O que o CPC de 2015 fez foi dar maior abrangência e ampliar a vinculação, que, agora, alcança, de forma obrigatória[3] e nos termos do art. 927, além das decisões prolatadas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade, das súmulas vinculantes e dos entendimentos firmados em julgamento de recursos repetitivos, os enunciados súmulas do STF e do STJ, as decisões prolatadas nos incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas[4] e a orientação do plenário ou do órgão especial dos tribunais, para os juízes a eles vinculados.

E a medida foi mais que bem-vinda. O jurisdicionado brasileiro já estava exausto de se deparar com decisões conflitantes prolatadas muitas vezes pelo próprio órgão julgador (às vezes no mesmo dia!). Isso sem mencionar o deliberado desrespeito às decisões de órgãos hierarquicamente superiores. Não era raro encontrar juízes de primeiro grau descumprindo enunciados de súmulas do STJ, utilizando, para tanto, a desculpa da liberdade funcional.

O que o CPC/15 fez, ao adotar os precedentes vinculantes[5], não foi tirar a liberdade dos juízes, mas, sim, entregar à população um processo mais isonômico e previsível, no qual todos aqueles que têm pretensões similares são tratados de forma igual.

Era inconcebível a loteria que havia se tornado o Judiciário brasileiro, na qual os juízes decidiam como bem entendiam e os advogados, por sua vez, pautados nessa premissa, propunham reiteradamente demandas, cujos fundamentos eram contrários às teses firmadas pelos tribunais[6].

Também é preciso ver com moderação (e tranquilidade) a importação de institutos tipicamente de common law para o tratamento dos precedentes à brasileira. Nossos sistemas são e continuarão a ser diferentes. Nossos precedentes são e serão sempre diferentes[7]. Apenas para exemplificar, enquanto o precedente em países de common law é formado a posteriori, aqui, o art. 927 trouxe precedentes que são formados a partir de procedimentos específicos. A população sabe, desde a instauração do incidente de assunção de competência, por exemplo, que o resultado por ele produzido será considerado um precedente vinculante[8]. Há, portanto, profundas diferenças, em todos os sentidos, que impõem seja a interpretação do nosso sistema, em boa medida, dissociada dos institutos de common law.

Voltando os olhos para uma perspectiva prática, percebe-se que, para implementação de precedentes vinculantes, o CPC/15 trouxe diversas alterações que, além de imporem ao juiz o respeito ao precedente, se voltam contra o litigante que tenta afrontar a tese firmada[9].

No âmbito do magistrado, para eleger apenas duas das medidas de implementação de um sistema de precedentes vinculantes, estão a reclamação e o dever de fundamentação.

O artigo 988 afirma que caberá reclamação para garantir a observância de decisão do STF em controle concentrado, enunciado de súmula vinculante e de acórdão proferido em incidente de resolução de demandas repetitivas ou incidente de assunção de competência. Sim, propositalmente, o legislador (da Lei 13.256/16) esvaziou o cabimento de reclamação contra decisão que contraria acórdão prolatado em julgamento de recurso repetitivo e, desde sempre, deixou de prever o remédio para as hipóteses de desrespeito a enunciado de súmula do STF, do STJ e a entendimento dos respectivos tribunais, em decisão prolatada pelo pleno ou pelo órgão especial.

Esse tratamento diferenciado dos precedentes previstos no art. 927 já é objeto de inúmeras ponderações da doutrina, desde a existência de precedentes mais e menos fortes[10] à necessidade de interpretação extensiva do art. 988[11].

O segundo meio encontrado pelo legislador para forçar a implementação do sistema e o respeito aos precedentes vinculantes é o art. 489, § 1º, VI, que considera não fundamentada (e, portanto, nula) a decisão judicial que deixa de aplicar o precedente, sem demonstrar a existência de distinção ou superação.

No tocante ao art. 489, o CPC não apenas apontou de forma genérica todos os precedentes previstos no art. 927, como incluiu, em atenção ao art. 926, a jurisprudência[12] ignorada sem a devida fundamentação, poderá levar à nulidade da decisão judicial[13].

É importante ressaltar que, muito embora o texto legal informe que, para que se considere a decisão não fundamentada, é necessário que o precedente tenha sido invocado pela parte, é dever do juiz conhecer e aplicar os precedentes vinculantes de ofício, o que se impõe pelo iura novit curia[14]. O mesmo raciocínio não se aplica à jurisprudência, que, por não ser considerada norma jurídica, deverá ser apontada pela parte.

O art. 489 traz, ainda, referência aos métodos para não aplicação do precedente, ou seja, em quais situações o juiz é “liberado” para decidir de forma distinta do entendimento firmado pelo tribunal hierarquicamente superior (ou por ele próprio).

O primeiro deles é a distinção e se dá quando as particularidades do caso concreto posto em julgamento são diferentes das daquele no qual foi formado o precedente. Diferentes, leia-se, a ponto de, se estivessem presentes quando do julgamento que levou à formação do precedente, determinarem um resultado diferente.

Não é o caso, portanto, de superar o que foi anteriormente decidido, mas sim, de cogitar como decidiria a corte formadora do precedente, se estivesse diante das peculiaridades apontadas no novo caso. O tribunal que formou o precedente, caso tivesse se deparado com aquelas circunstâncias, teria decidido de forma diversa. São distinções, portanto, suficientes para afastar a aplicação do precedente ou, ao menos, restringir sua abrangência[15]. Basta que o juiz aponte a existência da distinção e estará liberado para decidir de acordo com sua própria convicção.

O segundo meio do qual o juiz pode se valer para não aplicar precedente vinculante é a demonstração de superação, que poderá ocorrer sempre que seja considerado equivocado ou que não se adeque mais ao contexto social, no qual está inserido.

Isso não quer dizer que o juiz, ao entender o precedente equivocado ou ultrapassado, poderá afrontar sua autoridade, indicando, ele próprio, os motivos pelos quais entende pela necessidade de superação. Apenas o próprio órgão que formou o precedente ou órgão hierarquicamente superior são competentes para realizar a superação[16].

Não parece razoável instituir um sistema de precedentes vinculantes e, ao mesmo tempo, autorizar qualquer juiz a descumprir a orientação firmada, bastando, para tanto, que indique os motivos pelos quais discorda da decisão. Ao se referir à necessidade de demonstração de superação do precedente, o que o CPC pretendeu afirmar foi que o magistrado estará dispensado de aplicar o precedente invocado pela parte, caso ele já tenha sido superado pelo respectivo tribunal que o formou (ou por tribunal superior). Em hipótese alguma que ele seria competente para realizar, em seu próprio nome, a superação[17].

Esse entendimento merece alguma ponderação apenas quando ocorrer alteração legislativa, ou seja, o legislador produzir norma em sentido diverso da tese firmada no precedente. No caso, todavia, não se trata propriamente de superação, mas, sim, de alteração normativa que, mais do que desvincular o julgador do precedente, o retira do ordenamento jurídico.

Ainda sobre o sistema de precedentes vinculantes, vale observar que que o art. 1.022, considera omissa a decisão que “deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento”. Há, também, expressa previsão de cabimento de ação rescisória, sempre que o julgador aplicar o precedente sem levar em consideração a distinção apontada pela parte (art. 966, § 5º).

Por fim, não podemos nos furtar à crítica do que prevê o art. 1.013, § 3º, IV, que permite ao tribunal, verificando a deficiência de fundamentação (in casu, constatando que o juiz desrespeitou precedente vinculante), decretar a nulidade da decisão e julgar, desde logo, o mérito. Caso, por exemplo, identificando que o juiz descumpriu deliberadamente precedente vinculante, poderá o tribunal, ao reconhecer o ato de desrespeito praticado e decretar a nulidade, deixar de devolver os autos ao juízo de origem, para que decida obedecendo o precedente vinculante ou, conforme o caso, demonstrando a distinção ou a superação.

Por mais que atente para a primazia do julgamento do mérito e para a economia processual, o dispositivo contribui para a manutenção do status quo, uma vez que permite que os magistrados continuem a decidir desrespeitando a orientação dos órgãos superiores (e a não fundamentarem suas decisões de forma adequada), na medida em que transfere o ônus argumentativo diretamente para o tribunal, em certa medida, violando o duplo grau de jurisdição.

O magistrado que desrespeita o precedente não receberá o processo novamente, para prolatar decisão válida. Sobre ele não haverá qualquer prejuízo decorrente do descumprimento da norma contida no art. 489. Os únicos prejudicados serão as partes que, ao obterem o julgamento do mérito diretamente pelo tribunal, terão suprimida a oportunidade de interpor recurso ordinário e prejudicado o contraditório[18].

Uma das grandes vantagens da existência de precedentes obrigatórios é justamente a certeza de que os juízes respeitarão as teses firmadas, independentemente de as entenderem certas ou erradas. Autorizar que qualquer julgador entenda superado, por exemplo, o entendimento do STF em recurso repetitivo, é tornar inócua toda a estrutura montada na busca de um tratamento mais justo e isonômico do jurisdicionado. Infelizmente o art. 1.013 foi na contramão do sistema que o CPC buscou implementar, seja no tocante aos precedentes, seja, de forma mais ampla, quanto ao dever de fundamentação.

Para que os anseios do CPC/15 sejam alcançados é necessário que todos os atores do processo estejam comprometidos com seus fundamentos, compreendam o sistema e utilizem seus vetores, para que, com o tempo, as arestas ainda existentes sejam aparadas e tenhamos, como um efeito final de sua aplicação, em todas as suas nuances, a tão prometida celeridade processual.

[1] Sobre aplicação prática dos precedentes: CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2016.

[2] DIDIER JR., Fredie; SOUZA, Marcos Seixas. O respeito aos precedentes como diretriz histórica do direito brasileiro. Revista de Processo Comparado. Ano 1. Vol. 2. Jul.-dez./2015. P. 99/120.

[3] Sobre a discussão acerca da (in) constitucionalidade da vinculação: BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC – Lei n. 13.105, de 16-3-2015. São Paulo: Saraiva, 2015. P. 538/542.

[4] Sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas: TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: Editora Juspodvm, 2016.

[5] A utilização do termo “precedente” para abranger todas as hipóteses previstas no art. 927 é, com razão, controversa na doutrina. Todavia, o legislador brasileiro uniu desde controle concentrado de constitucionalidade a orientação do plenário ou de órgão especial dos tribunais (estaduais, inclusive), o que nos parece autorizar tratar, pelo menos inicialmente, de forma igual, o conjunto heterogêneo de decisões reunidas no artigo, sem que isso possa ser considerado atécnico.

[6] Sobre a importância do respeito aos precedentes: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Por que respeitar os precedentes? Disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/vida-pública/justicaedireito/colunistas/teresa-arruda-alvim-wambier/por-que-respeitar-os-precedentes-2ot2n72y384owyprqn3gynso1, acesso em 20.11.2016

[7] Vide SCHMITZ, Leonard. Compreendendo os “precedentes” no Brasil: fundamentação de decisões com base em outras decisões. Revista de Processo. Vol. 226. P. 349. Dez/2013.

[8] Tive oportunidade de tratar do tema em Coisa julgada sob perspectiva comparatística: o que o sistema norte-americano pode nos ensinar sobre a extensão dos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada. Revista de Processo. Vol. 258/2016. Ago/2016.

[9] São exemplos a tutela de evidência e a improcedência liminar do pedido.

[10] Para compreender melhor o conceito de precedentes e os níveis de obrigatoriedade: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais superiores no direito brasileiro. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

[11] GALINDO, Beatriz. A força dos precedentes decorrentes do julgamento de casos repetitivos. Uma análise sobre as semelhanças e diferenças entre a força do precedente formado em IRDR e em julgamento de recursos repetitivos. Disponível em http://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/387855031/a-forca-dos-precedentes-decorrentes-do-julgamento-de-casos-repetitivos, acesso em 09.11.2016

[12] O termo jurisprudência, ao que parece, foi utilizado pelo código como exemplo de decisão judicial sobre caso semelhante e é nesse sentido que é tratado no texto.

[13] É possível, nesses casos, opor embargos de declaração, na forma do art. 1.022, p. Ú., I e II.

[14] O que não exime o julgador da regra prevista no art. 100, doCPCC, conforme expressamente disposto no art. 9277, § 1º.. No mesmo sentido: TUCCI, José Rogério Cruz e. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 485 ao 538. Coleção Comentários ao Código de Processo Civil; v. 8. Coordenação Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 112

[15] “Nessas hipóteses não há que se falar em exceção ao valor vinculante do precedente. O que há é a pura e simples ausência de incidência do precedente. O precedente não se aplica, porque ausentes seus pressupostos de incidência – o caso sob julgamento simplesmente recai fora do âmbito do precedente.” MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p.119.

[16] “A regra em relação à competência é a de que a superação é uma prerrogativa dos tribunais superiores: somente pode ocorrer mediante decisão do mesmo órgão jurisdicional que estabeleceu o precedente. Tal regra é consequência lógica do fato de a superação implicar o estabelecimento de novo precedente. Como mencionado, por meio do overruling, um precedente perde sua eficácia normativa (sendo retirado do ordenamento jurídico) e é substituído por um novo precedente com eficácia normativa[16]. Por conta disso, apenas a Corte que fixou o precedente a ser superado ou a Corte a ela superior pode promover a superação (já que somente ela poderá estabelecer nova regra jurisprudencial vinculante).” LIPIANI, Julia. Como promover a superação dos precedentes formados nos julgamentos de recursos repetitivos por meio dos recursos especial e extraordinário? Artigo inédito, gentilmente cedido pela autora.

[17] O mesmo raciocínio não se aplica à jurisprudência, com a qual o juiz poderá discordar e reputar superada, desde que identifique fundamentadamente porque a tese nela contida não merece ser aplicada. Vejam que superação e distinção, que são dois conceitos vinculados aos precedentes obrigatórios, no Brasil, foram são igualmente voltados ao que o art. 489 chamou de jurisprudência, o que exige certa ponderação no tratamento dos conceitos de distinguishing e overruling.

[18] Basta pensar, por exemplo, na hipótese na qual o tribunal reconhece a nulidade da decisão e, apontando distinção, deixa igualmente de obedecer precedente. A parte não disporá de recurso ordinário para demonstrar que os fatos são idênticos o que, considerando as restrições de análise fática pelos tribunais superiores, implicará o efeito prático da ausência de recurso.
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