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Produção antecipada da prova no CPC/2015: Breves considerações sobre a inversão do ônus e a recorribilidade das decisões

Por: Luíza Rodrigues
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Processo Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC). Mestre em Direito pela UFSC. Membro da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SC. Graduanda em Administração Empresarial pela Universidade do Estado de Santa Catarina.


A produção antecipada da prova, prevista nos artigos 381 a 383, do CPC/2015, viabiliza a antecipação do que só seria possível no curso da instrução processual[1] (isto é, a produção da prova)[2]. Embora o CPC/1973 já previsse essa ação, passível de ser proposta nos casos em que presente a urgência (era uma das cautelares típicas, prevista nos artigos 846 a 851 do Código revogado)[3], o CPC/2015 lhe conferiu espectro mais amplo, abarcando outras hipóteses que não envolvem urgência[4].

Então, nos casos em que (i) “haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação” (artigo 381, inciso I); (ii) “a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito” (artigo 381, inciso II); ou (iii) “o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação” (artigo 381, inciso III), pode a parte requerer a produção antecipada da prova.

Como seu objetivo é, tão somente, viabilizar a produção da prova[5], não comporta valoração ou formação de convencimento[6]. O procedimento da produção antecipada da prova é conciso e culmina na prolação de sentença homologatória, que atesta servirem os elementos produzidos como prova judicial[7]. Assim, a análise da prova ocorrerá no bojo de uma ação[8] (futura ou em curso[9]), resguardando a ambas as partes o exercício do contraditório, em sua acepção substancial[10].

Com fulcro nessas premissas – que traduzem o propósito da produção antecipada de prova – prevê o Código, em seu artigo 382, § 4o, que nesse procedimento “não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário”.

Em uma primeira análise, a interpretação literal do dispositivo leva a crer ser inviável a interposição de recurso em sede de produção antecipada de prova, afora a hipótese de decisão de indeferimento total do pedido formulado pelo requerente. Todavia, entende-se que a previsão não consubstancia uma vedação absoluta, devendo ser interpretada com parcimônia e de forma não literal.[11]

Assim, se em sede de produção antecipada de prova for proferida decisão que consubstancie uma das hipóteses previstas no artigo 1015 do CPC/2015, será cabível agravo de instrumento. Prevalece, portanto, o conteúdo da decisão para aferição da recorribilidade (e não o óbice insculpido no artigo 382, § 4º).

Pense-se, por exemplo, no caso de ser proferida decisão que inverte o ônus da prova em sede de produção antecipada da prova. Abstraindo-se o suporte procedimental (isto é, o fato de ter sido proferida em sede de produção antecipada de prova) não há dúvidas de que a decisão versa sobre redistribuição do ônus da prova e, assim, enquadra-se na hipótese insculpida no artigo 1.015, inciso XI, do CPC/2015. Nesses termos, supera-se a questão do cabimento a ensejar a admissibilidade do recurso, desde que presentes os demais requisitos intrínsecos e extrínsecos[12].

Configurada a recorribilidade dessa decisão, passa-se ao mérito: à impossibilidade de inversão do ônus da prova em produção antecipada de prova.

O ônus da prova[13], como é cediço, constitui regra de comportamento (ônus subjetivo) e regra de julgamento (ônus objetivo)[14], a exigir que as partes comprovem os fatos versados na lide[15], sob pena de implicações jurídicas[16]. Assim, regra geral, incumbe ao autor fazer prova dos fatos constitutivos do seu direito e ao réu, dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor[17]. Em situações excepcionais, faculta-se ao juiz atribuir o ônus da prova de maneira diversa (desde que por decisão fundamentada). Também as partes podem convencionar acerca da distribuição diversa do ônus da prova[18], na forma do artigo 373, § 3º, do CPC/2015.

Uma vez estabelecido o ônus que recai sobre cada uma das partes, devem produzir a prova (desincumbir-se do encargo), sob pena de sofrerem consequências ao final do processo – seja com a procedência ou com a improcedência dos pedidos. Portanto, a atribuição do ônus da prova acarreta implicações jurídicas a ambas as partes, sendo, em regra, favoráveis à parte que tenha cumprido, satisfatoriamente, o encargo, e desfavoráveis à parte que não tenha logrado êxito na produção da prova que lhe incumbia.

Feitas essas breves digressões, transpõe-se a análise da distribuição dinâmica da prova ao âmbito da produção antecipada de prova, com as peculiaridades que lhe são inerentes. De maneira pontual, entende-se que a inversão do ônus probatório é incompatível com a produção antecipada de prova.

Ora, se o CPC/2015 faculta à parte produzir antecipadamente a prova nos casos previstos no artigo 381, presente ou não a nota de urgência, entende-se que a inversão do ônus da prova deturpa o propósito da produção antecipada de prova. Como já dito, o escopo dessa ação probatória[19] exaure-se na produção da prova cuja valoração será objeto de outra ação.

É paradoxal admitir-se que uma parte (A) proponha produção antecipada de prova (com o intuito de produzir, antecipadamente, prova pericial, por exemplo), e o magistrado, por sua decisão, inverta o ônus da prova, obrigando a parte contrária (B) à produção antecipada de uma prova que não foi por si requerida. Isso implica, praticamente, alteração do polo processual, como se a parte ré (B) – e não a parte autora (A) – tivesse proposto a produção antecipada da prova[20].

É claro que essa inversão foge ao objetivo da produção antecipada da prova, em especial porque o procedimento não comporta pronunciamento “sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas” (na dicção do artigo 382, § 2º, do CPC/2015). Nessa toada, arrisca-se a dizer que a produção de prova em ação de produção antecipada sequer pode ser considerada um ônus (isto é, não assume feição de um encargo), na medida em que seu descumprimento não teria o condão de acarretar consequências como a procedência ou a improcedência dos pedidos de uma ação.[21]

Portanto, se o escopo é a produção da prova e se, ao final, a sentença é meramente homologatória da prova produzida – a fim de que possa servir à instrução de processo subsequente, por exemplo – não se pode falar em ônus e em sua inversão. Compete à parte que propôs a produção antecipada de prova (no exercício de suas prerrogativas) produzir a prova que pretende. Foge à sua alçada imputar à outra parte o “ônus” de produzir uma prova, antecipadamente, de maneira indireta.

Com essas breves considerações, conclui-se que (i) a inversão do ônus da prova é inviável em sede de produção antecipada de prova, considerando o propósito e as premissas que a embasam; e (ii) decisões proferidas na ação de produção antecipada da prova são recorríveis por agravo de instrumento nos casos em que se subsumir a hipótese expressamente prevista no CPC/2015 (não sendo a previsão do artigo 382, § 4º, do CPC/2015, um óbice intransponível).

[1] Leciona José Frederico Marques que “a instrução, como fase do processo, é o instrumento procedimental da prova” (Manual de direito processual civil. Processo de conhecimento. Campinas: Bookseller, 1997. V. 2. P. 207).

[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10. Ed. Salvador: Juspodivm, 2015. P. 137.

[3] Na vigência do CPC/1973, a ação cautelar de produção antecipada de provas, proposta antes ou na pendência da ação principal, limitava-se à antecipação de prova oral (mediante o depoimento pessoal da parte e/ou de testemunhas) e de prova pericial (artigo 846, do CPC/1973). Assim, a produção de prova oral poderia ser antecipada nos casos em que: (i) “[tivesse] de ausentar-se” (artigo 847, inciso I); (ii) “por motivo de idade ou de moléstia grave, [houvesse] justo receio de que ao tempo da prova já não [existisse], ou [estivesse] impossibilitado de depor” (artigo 847, inciso II). A produção de prova pericial, por sua vez, poderia ser antecipada “havendo fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação” (conforme artigo 849, do CPC/1973).

[4] YARSHELL, Flávio Luiz. Seção II. Da produção antecipada da prova. In: ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa; et al. (Coord.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. P. 1027.

[5] Araken de Assis faz importante ressalva quanto à imprecisão terminológica do CPC/2015 ao referir à produção antecipada da prova. Explica o autor que “desprovida a produção antecedente da eficácia que lhe é própria, que pressupõe a admissão, cuida-se de simples asseguração, e não, desde logo, da produção da prova” (Processo civil brasileiro. Parte geral: institutos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. V. 2. T. 2. P. 291).

[6] MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. P. 641. Aduz o autor que “não é o juiz da ação de produção de provas quem as admite e valora. A produção realizada no procedimento previsto nos arts. 381 ss. É parcial, já que a produção integral só se dará em outra ação, quando admitidas e avaliadas as provas”.

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 56. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. V. 1. P. 919.

[8] Ressalta Araken de Assis que “não é somente a avaliação da prova que incumbirá ao juízo da causa principal. Também lhe tocará o reexame dos requisitos formais da produção da prova” (Processo civil brasileiro. Parte geral: institutos fundamentais, p. 324).

[9] Em sentido contrário, Eduardo Talamini defende que a produção antecipada de prova só é possível de forma prévia ao processo, visto que se o “processo já estiver em curso e houver a necessidade de antecipação de uma prova […] aplica-se o art. 139, VI, do CPC/2015 […] que confere ao juiz o poder de alterar a ordem de produção dos meios de prova” (Produção antecipada de prova no Código de Processo Civil de 2015. Revista de processo, v. 260, out/2016, p. 75-101 (versão digital, p. 3)).

[10] Conforme preconiza o CPC/2015, em seu artigo 7º.

[11] No mesmo sentido, Fredie Didier Jr. (Produção antecipada da prova. In: _____; JOBIM, Marco Félix; FERREIRA, Willian Santos (Coord.). Direito probatório: conforme novo CPC. 2. Ed. Salvador: Juspodivm, 2016. P. 594) e Fabrício de Farias Carvalho (A prova e sua obtenção antecipada no novo Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie; JOBIM, Marco Félix; FERREIRA, Willian Santos (Coord.). Direito probatório: conforme novo CPC. 2. Ed. Salvador: Juspodivm, 2016. P. 634).

[12] À luz da classificação de José Carlos Barbosa Moreira (Comentários ao Código de Processo Civil. 12. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. V. 5. P. 263).

[13] Cândido Rangel Dinamarco conceitua o ônus da prova como “o encargo, atribuído pela lei a cada uma das partes, de demonstrar a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo” (Instituições de direito processual civil. 5. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005. V. 3. P. 71).

[14] XAVIER, Trícia Navarro. O “ativismo” do juiz em tema de prova. Revista de processo, v. 159, mai/2008, p. 172-197.

[15] Humberto Dalla Bernardina de Pinho leciona que “a regra da distribuição do ônus da prova é fundamental para que o magistrado possa se desincumbir do seu mister e determinar como se dará o esclarecimento dos fatos controvertidos” (Breves reflexões sobre o ônus da prova no CPC/2015. In: _____; JOBIM, Marco Félix; FERREIRA, Willian Santos (Coord.). Direito probatório: conforme novo CPC. 2. Ed. Salvador: Juspodivm, 2016. P. 343).

[16] Destaca Eduardo Cambi que “o momento da inversão do ônus da prova (anterior à sentença) constitui fator de maior segurança para as partes, porque dissemina, nos litigantes, maior consciência dos riscos que correm, caso não venham a desincumbi-lo, bem como dá maior grau de legitimação às decisões judiciais” (Teoria das cargas probatórias dinâmicas (distribuição dinâmica do ônus da prova) – exegese do art. 373, §§ 1o. E 2o. Do NCPC. Revista de processo, v. 246, ago/2015, p. 85-111. (versão digital, p. 8)).

[17] Nos termos do artigo 373, incisos I e II, do CPC/2015.

[18] O que se denomina inversão convencional do ônus da prova (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, p. 78).

[19] Como referem alguns autores, a exemplo de Eduardo Talamini (Produção antecipada de prova no Código de Processo Civil de 2015. Revista de processo, v. 260, out/2016, p. 75-101 (versão digital, p. 2)) e José Miguel Garcia Medina (Direito processual civil moderno, p. 639).

[20] Não se olvida a possibilidade de a parte ré requerer, também, produção de prova, dado o caráter dúplice da ação de produção antecipada da prova (artigo 382, § 3, do CPC/2015). Contudo, o ponto aqui é forçar a parte ré a produzir uma prova como se a iniciativa de propor a ação (para antecipar referida produção) tivesse sido sua.

[21] Para José Miguel Garcia Medina, a ação de produção antecipada de prova culmina no reconhecimento do direito à prova. Nas palavras do autor, “a ‘necessidade de antecipação’ referida no art. 382 diz respeito não à realização futura de algum direito material, mas sim de um direito de produzir a prova, ao qual, em eventual processo vindouro, poderá corresponder um ônus probatório” (Direito processual civil moderno, p. 640).
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